A década de 1990 assistiu a uma importante inflexão nas formas de enfrentamento das desigualdades raciais no contexto sociocultural brasileiro, com o aprofundamento do debate sobre a ideologia da “democracia racial”.
A busca de soluções para esta questão mobilizou governo e entidades da sociedade civil, com a finalidade de implementar políticas públicas capazes de tornar realidade a igualdade de condições e de oportunidades.
Este debate foi inspirado pelo reconhecimento da existência de identidades historicamente excluídas e pelo princípio de que a negação de oportunidades para a população negra, que experimenta historicamente a desigualdade racial e social, deveria ser efetivamente enfrentada.
Considerando a formação sócio-histórica brasileira é evidente que as bases constituídas para um negro e um não negro são completamente distintas, o que implicou sérios danos à nossa realidade e exigiu medidas urgentes, a fim de que o acesso e oportunidades oferecidas sejam equânimes.
Diante deste quadro é que surgiram as políticas de ações afirmativas, apresentando em seu bojo a igualdade de oportunidades, o respeito e a valorização da cultura afro-brasileira, afirmação da identidade, oportunizando a inserção dos indivíduos da população negra nos diversos espaços sociais, tendo em vista que ela representa a maioria brasileira e, principalmente, o reconhecimento de um passado cruel e opressor que deve ser revertido se se quiser alcançar, de fato, a democracia.
Por este aspecto, empreenderemos aqui uma discussão sobre a potencialidade revolucionária das ações afirmativas e como estas políticas têm contribuído fortemente com significativas transformações na história de desigualdade racial da sociedade brasileira.
Ao refletirmos sobre o potencial revolucionário das ações afirmativas, nos referimos a uma dimensão que julgamos como o mais fundamental e, por isso mesmo, não discutida efetivamente – especialmente em função da constatação de que os segmentos sociais mais prestigiados em nossa sociedade não têm interesse em transformar status quo das relações raciais, devido principalmente as relações de poder e dominação que envolve hierarquias e subalternidades – a transformação das condições materiais e intelectuais de existência da população negra como uma condição sine qua non para a construção de uma sociedade mais justa e mais democrática racialmente.
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Por que para o negro sim! Razões e afirmações!
Vivemos num país que apesar de conter uma população majoritariamente negra privilegia um padrão eurocentrico que em nada tem a ver com a sua realidade.
O Brasil durante centenas de anos utilizou-se largamente da mão de obra escrava do negro africano que, como já sabemos, era tratado de forma subumana e obrigado a práticas de trabalho variantes, desde as tarefas no engenho a favores sexuais.
Por tanto tempo explorado e humilhado foi descartado pela vinda de imigrantes europeus sob a falácia de que eles possuíam maior capacitação para o trabalho.
Para isso não houve economia de esforços e muito menos de recursos financeiros. Esta Primeira Ação Afirmativa significou, de fato, a tentativa de um processo de branqueamento da população brasileira.
Tal concepção de raça baseava-se na teoria da degenerescência, o cerne do racismo biológico, que condenava a mistura entre as raças haja vista a degradação da população branca.
O negro era visto como um sujeito inferior, de má índole, desprovido de inteligência, desequilibrado, rebelde, desqualificados, enfim, pessoa da pior espécie.
Houve, portanto, uma urgente necessidade em purificar a raça, também entendida por Viana (1934 apud NASCIMENTO, 2003:126) como um processo de arianização.
Nina Rodrigues, psiquiatra maranhense e pioneiro nos estudos sobre o negro no país afirmou que,
[…] para a ciência não é esta inferioridade mais do que um fenômeno de ordem perfeitamente natural, [uma vez que] até hoje não se puderam os negros constituir em povos civilizados. [Por isso] a raça negra no Brasil […] há de constituir sempre um dos fatores da nossa inferioridade como povo. (RODRIGUES, 1945:24-8 apud NASCIMENTO, 2003:125)
Não era interessante investir no negro, bem como dar a estes condições para a sua emancipação. Porém, havia a preocupação de que a população negra, maioria no território nacional, também se constituísse enquanto maioria política, ameaçando à hegemonia branca.
O negro, tão pertencente ao território nacional, era tratado como um elemento não pertencente ao mesmo. “Embora nunca houvesse existido um Brasil sem negros, estes foram transformados em estrangeiros por uma definição eurocentrista da identidade nacional”. (NASCIMENTO, 2003:127).
Diante das poucas saídas que possuíam para sobrevivência sob um mercado industrial que rejeitou a sua mão de obra, restava-lhe as ocupações com poucas condições e baixa remuneração, como babás, cozinheiras, empregadas domésticas ou como vendedores (as) pelas ruas das cidades.
As comunidades de terreiro representaram uma das raras possibilidades de a população negra conseguir sobreviver, desenvolver, resistir e se afirmar, embora sob constante vigilância policial.
Nascimento (2003:128) aponta que “na década de 1930 as ciências sociais trocaram seu paradigma de cunho racial biológico para o étnico-cultural (antropológico)”, assumindo um pretenso antirracialismo travestido de antirracismo trazendo à tona a ideologia da “democracia racial”.
Neste sentido, opera-se o sortilégio da cor. O supremacismo branco mantém a sua dominação assumindo novos mecanismos para perpetuação de seu poder em detrimento da população negra. E na impossibilidade de atingir, de fato, o branqueamento dos indivíduos mestiços, a sociedade satisfaz-se com a desafricanização destes, “elevando-os” a “brancos virtuais” (NASCIMENTO, 2003).
Uma “democracia” cuja finalidade se expõe para quem quiser ver; só um dos elementos que a constituíram detém todo o poder em todos os níveis político-econômicos: o branco. Os brancos controlam os meios de disseminar as informações; o aparelho educacional; eles formulam os conceitos, as armas e os valores do país. Não está patente que neste exclusivismo se radica o domínio quase absoluto desfrutado por algo tão falso quanto essa espécie de “democracia racial”. (NASCIMENTO, 2002:86 apud GUIMARÃES, 2013:42-3).
Esta “democracia racial”, de fato, é um mito visto que a realidade vivida pelos afrodescendentes mostra o contrário.
É um constante desrespeito, preconceito, discriminação, negação, como se fossemos seres decolados da realidade, como se para o Brasil se erguer não tivesse sido necessário seu árduo trabalho, como se não fossemos capazes de ser grandes presidentes, diretores, gerentes, doutores, mas vivermos relegados à baixa remuneração e empregos de doméstica, gari, etc, ocultos e invisíveis diante da realidade do branco em seus cargos de chefia e liderança.
As ações afirmativas: a materialização da Afrocidadanização
Instrumentos fundamentais para o processo de Afrocidadanização, as políticas de ação afirmativa têm sido entendidas como um conjunto de estratégias políticas implementadas pelos governantes, a fim de favorecer grupos socialmente discriminados por motivos de raça, sexo e etnia e que, em decorrência disto, experimentam uma situação desfavorável em relação a outros segmentos sociais.
Implica, dessa forma, na formulação de políticas abertamente não-universais com o intuito de beneficiar de forma diferenciada a grupos discriminados, de modo a permitir que, a médio e longo prazos —definidos em termos de segunda e terceira gerações—, eles possam alcançar condições econômicas, sociais e culturais equânimes.
Portanto, as “ações afirmativas” têm como propósito o reconhecimento de que pessoas sujeitas à desigualdade devem receber tratamento diferenciado para fins de promoção de justiça social (ANDREWS, 1997).
O principal objetivo das políticas de ação afirmativa é tornar a igualdade de oportunidades uma realidade, funcionando como política preventiva à discriminação, tendo como especificidade apresentar uma relação inversa às políticas antidiscriminatórias (HERINGER, 1999).
Tais políticas são direcionadas a vários segmentos sociais. De um lado, com políticas racialmente sensíveis e, de outro, com políticas direcionadas às minorias políticas e culturais.
No que tange a questão específica das relações de gênero, trata-se de medidas que visam a aplicação das leis de igualdade, pois a sua finalidade é colocar em marcha programas que possam garantir às mulheres avanços concretos.
As ações afirmativas se apresentam como instrumentos específicos para o estabelecimento de uma igualdade substantiva —seja através de cotas ou de qualquer outro instrumento de aplicação—, constituindo-se em um poderoso instrumento de enfrentamento à discriminação.
Ao ampliar a oferta de oportunidades para todos, no sentido de igualá-las, essas ações conduzem o conjunto da sociedade na direção da cidadania plena e inclusiva.
Ser cotista representa muito mais do que ter uma vaga na faculdade, representa uma vitória da população negra num processo tão sofrido de lutas, derrotas, conquistas e que através disso tem reconhecido seu direito, enquanto negros e parte integrante deste país desigual desde sua gênese.
Ao obter esta oportunidade através das cotas dá-se concretude a um sonho e a uma possibilidade que parecia distante, evidenciando que é possível estar na universidade, aprender, se formar e transformar a sua realidade material e cultural.
Neste sentido, nos posicionamos a favor de cotas e de outras ações afirmativas para o ingresso da população negra em todos os espaços em que esta população está sub ou não representada, para os lugares onde sempre estiveram ausentes ou mesmo presentes em condições e funções subalternizadas, seja nas universidades públicas, privadas, nas instituições públicas e para o ingresso nos três poderes.
É certo que há muito ainda a se fazer, muita luta a enfrentar, porém o conjunto de vivências e percepções que temos presenciado reflete uma condição revolucionária, que apontam para uma condição de processo; de um devir; de futuro para transformar profundamente a história material, cultural e simbólica na vida dos indivíduos da população negra brasileira, ou seja, as ações afirmativas vêm atuando como uma poderosa ferramenta no processo de Afrocidadanização.
*Co-autoria: Bruna Cristina da Conceição Silva Lyrio, possui Bacharelado em Serviço Social pela UNIAN – Centro universitário Anhanguera de Niterói (2013). É graduanda em Sociologia na UFF
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Doutor em Serviço Social (PUC-Rio); Mestre em Sociologia (IUPERJ); Professor Adjunto no UNIAN; Avaliador do INEP/MEC; autor dos livros: Afrocidadanização: ações afirmativa e Trajetórias e Vida no Rio de Janeiro; Porque para Negro Sim! As Cotas Raciais como instrumento para a Afrocidadanização.