Cidadania e respeito às diferenças: convergências e tensões

Efetivar a cidadania significa inserir grupos socialmente excluídos e pensar políticas diferenciadas que atendam as particularidades destes indivíduos.

Autora: Cristiane Lourenço*

A noção de cidadania não nasce com a modernidade. Pode ser considerada uma experiência histórica, uma vez que, já na Grécia antiga, Aristóteles definiu o cidadão como todo aquele que contribuía para a formação do governo. (BODSTEIN, 1997; COUTINHO, 1999).

Todos que participavam ativamente das assembleias e que tomavam decisões que influenciavam a coletividade eram considerados cidadãos.

Com a modernidade, cidadania continua ligada à concepção de direitos civis (individuais) como defendido por Locke (MELLO, 2006).

A tarefa fundamental do governo para Locke seria garantir os direitos naturais, que em sua concepção seriam inalienáveis. Dentre os direitos naturais encontravam-se o direito à propriedade, à vida e o direito à liberdade.

A partir de Marshall (1967), baseado no modelo da Grã-Bretanha, o conceito de cidadania adquire um novo significado e torna-se parte de um processo que tem início com a aquisição dos direitos civis, que se refere aos direitos privados, ao direito a lutar pela garantia da liberdade individual.

Em seguida, os direitos políticos dizem respeito à tomada de decisões, ao direito de votar e ser votado.

E os direitos sociais, que tratam dos mínimos sociais a que os cidadãos teriam direito.

A cidadania, na concepção de Marshall (1967), consistiria em assegurar que todos os indivíduos sejam tratados como iguais em uma sociedade de iguais. Para que isto ocorra é preciso que os direitos civis, políticos e sociais se estabeleçam em plenitude.

Foto: Reprodução da internet

A expansão dos direitos de cidadania geraria também uma expansão das classes de cidadãos. Para Marshall, a cidadania plena seria somente alcançada se o Estado assegurasse que cada indivíduo fosse capaz de participar da vida comunitária.

Um aspecto deste período é que a cidadania aparece vinculada a atividade laborativa. A falta de cidadania estaria associada à desigualdade, à necessidade e mesmo à carência (BODSTEIN, 1997).

Seriam cidadãos somente os que tinham vínculo formal de trabalho. Os demais eram os marginalizados. A evolução do conceito de cidadania corre em meio às novas exigências sociais.

Os direitos individuais dão lugar aos vínculos com grupos específicos. Pertencimento, igualdade e coletividade passam a integrar as demandas por direitos de cidadania.

Deste modo, os direitos na modernidade estão vinculados aos novos espaços democráticos, à pluralidade e depreendem legitimidade e reconhecimento dos diferentes sujeitos.

Trata-se de um novo processo de enfrentamento da questão social, através do fortalecimento da coletivização, da equidade e da justiça social. Marshall (1967) destaca a questão da igualdade como característica fundamental quando se trata de direitos.

Entretanto, deve-se pensar que só existiria igualdade quando sujeitos que se reconhecem como iguais têm a mesma motivação.

Marshall não salienta o aspecto do conflito que permeia a busca por direitos de cidadania e que é prerrogativa para a conquista dos demais direitos.

Outrossim, o exercício dos direitos políticos implica o aparecimento de novos atores, a agenda de demandas se torna fruto de disputas.

Pode-se pontuar aqui uma contradição entre cidadania e classes: a condição de classe cria privilégios e consequentemente maior acesso de um grupo aos direitos do que de outro. Ou seja, a classe também pode determinar quem seria “mais ou menos” cidadão.

Os direitos de cidadania se apresentam como um bem comum, que pressupõe igualdade e participação.

Ambas se alicerçam na busca pelos direitos. Ou seja, na contemporaneidade, cidadania pode ser entendida como um processo no qual grupos e indivíduos partilham interesses comuns e lutam para que suas pautas reivindicatórias sejam atendidas pelo Estado.

A ideia de igualdade, característica fundamental do conceito de cidadania, ganha, a partir dos movimentos sociais amplitude, saindo do plano individual inicialmente pensado por Marshall.

Ainda que a prerrogativa moderna de direitos de cidadania se mostre indissociável da concepção individualista, o campo da luta por direitos supõe o envolvimento de atores coletivos.

Cidadania e democracia estão ligadas, se articulam. A democracia, por princípio, pressupõe a participação dos cidadãos na vida social (COUTINHO, 1999).

A respeito da relação entre cidadania e democracia vale ressaltar que para uma democracia ser considerada estável, não bastaria apenas uma estrutura básica sólida.

A ampliação da cidadania seria, em última medida, parte do processo de construção dos direitos democráticos, sendo fundamental que esteja pautada em fatores como identidade, participação e controle social.

A cidadania funcionaria como mecanismo de promoção do bem público, este sim indispensável para o estado democrático de direitos. (KYMLICKA & NORMAN, 1997).

É com base neste entendimento, que a cidadania adquire centralidade no jogo democrático.

Posto isto, a atuação política de grupos e movimentos sociais se torna fundamental para que as demandas postas pelos indivíduos sejam ouvidas e, por conseguinte, os direitos sejam atendidos.

Coutinho (1999), Santos & Avritzer (2005) e Fraser (2008) apontam que os movimentos sociais estão imersos em uma disputa pela ampliação do campo político e entre as demandas estão aumento dos direitos de cidadania e um novo modelo das práticas democráticas com a inserção de atores sociais excluídos.

A cidadania não é oferecida aos indivíduos por quem está no poder, mas resulta de um conflito permanente, onde as classes subalternas lutam para alcançar seus direitos.

A atuação dos grupos de interesse seria então, transversal a ação estatal e aponta para questões além das normas legais, trazendo à tona a pauta de representação e identidades.

O conceito de cidadania passa, a partir da atuação dos movimentos sociais contemporâneos por aquilo que se pode chamar de uma ressignificação.

A noção de cidadania como direito a ter direitos, é superada pela noção de participação. Se antes as relações eram verticalizadas – Estado-cidadão, agora elas tornam-se triangulares – grupos de interesse-Estado-cidadão.

Ainda que fundamentalmente as lutas por direitos de cidadania partam de baixo para cima, elas ganham um novo sentido ao inserir novos atores na disputa por direitos.

A busca por direitos de cidadania requer que os movimentos sociais contemporâneos criem estratégias de defesa de políticas emancipatórias, que garantam a coexistência da multiplicidade de grupos e a garantia de acesso aos direitos sociais (SANTOS & AVRITZER, 2005).

Nesta conjuntura, é importante examinar a perspectiva de Fraser (2008) acerca dos movimentos que buscam justiça social.

A autora nos traz dois paradigmas que são importantes para que possamos analisar o cenário atual da busca por direitos de cidadania.

O primeiro é o paradigma de redistribuição que diz respeito às reivindicações de determinados grupos por uma distribuição mais igualitária da riqueza socialmente produzida.

A partir da perspectiva marxiana, este paradigma defende que a maior injustiça sofrida trata-se da exploração do proletariado.

O segundo é o paradigma de reconhecimento, que se refere às políticas voltadas para as identidades culturais. Com base na filosofia hegeliana, consiste na reivindicação por uma política das diferenças.

Estes paradigmas, segundo a autora (2008) são balizados por quatro modos que os diferenciam estruturalmente e impactam diretamente no modo como ambos buscam seus direitos de cidadania:

Primeiro, ambos contêm diversas concepções de injustiça. O paradigma da redistribuição centra-se nas injustiças socioeconômicas.

Acredita que a forma como se dá a estrutura econômica da sociedade é decisiva para o não acesso aos direitos por parte dos indivíduos.

Por sua vez, o paradigma do reconhecimento entende que as injustiças são culturais, centradas nos padrões sociais de representação, interpretação e comunicação entre os grupos.

Em segundo lugar, a resposta às injustiças também possui distinções importantes. No paradigma da redistribuição, a solução seria uma reestruturação econômica que democratizasse o modo como a riqueza é socialmente distribuída.

Já no paradigma de reconhecimento, a solução estaria em uma mudança cultural simbólica, através do respeito as diferentes identidades e produtos culturais dos grupos socialmente excluídos.

A terceira dissimilitude entre um e outro diz respeito à maneira como os grupos sociais sofrem as injustiças. Se no paradigma de redistribuição, são as classes definidas como economicamente desfavoráveis que sofrem injustiça.

É a classe trabalhadora explorada, cujos membros vendem sua força de trabalho em troca de subsistência.

No caso do paradigma de reconhecimento, os grupos injustiçados são aqueles com menos status e prestígio em relação aos demais grupos. São aqueles que possuem menor valor cultural em comparação às classes dominantes.

Por fim as diferentes concepções assumidas neste quarto aspecto, trata da ideia de diferença de grupo. No paradigma de redistribuição, são as injustiças econômicas que geram tratamento diferenciado aos grupos.

Seria preciso, então, abolir as diferenças dentro do grupo e não as reconhecer para que seja possível lutar por uma política econômica justa.

No paradigma do reconhecimento, as diferenças dentro do grupo precisam ser acolhidas e discutidas para que a injustiça, que já seria preexistente, não aconteça.

Ao tratar particularmente dos movimentos sociais contemporâneos que lutam pelo respeito às diferenças, é preciso considerar que as lutas por reconhecimento vêm crescendo desde os anos 2000.

Um olhar inicial pode levar ao entendimento que se trata de reivindicações heterogêneas, mas ao debruçar sobre as demandas dos movimentos, é possível enxergar que todas tratam de busca por direitos de cidadania.

Fraser (2008) aponta que há uma nova gramática social que requer uma nova cultura política.

Não se trata de mera política de reivindicação (KYMILICKA & NORMAN, 1997), mas sim da adoção de novas estratégias de busca por direitos de grupos diferenciados, que são reconhecidos pela democracia como demandas de inclusão.

Incorporar no conceito de cidadania questões como expressão da identidade e de pertença de determinados grupos, para além de um status legal definido por um conjunto de direitos e responsabilidades, significa inserir grupos socialmente excluídos e pensar políticas diferenciadas que atendam as particularidades destes indivíduos.

Essa inserção vem acompanhada de uma noção ampliada de cidadania. O reconhecimento não significaria um desmonte dos grupos sociais, pelo contrário, significaria paridade de participação, visibilidade e inserção de certos grupos na arena de lutas por reconhecimento.

Entende-se que a redistribuição e o reconhecimento, enquanto paradigmas isolados não seriam suficientes para garantir a igualdade. É preciso que os movimentos sociais atuem em busca da convergência destas duas vertentes para que os direitos de cidadania sejam vivenciados todos os indivíduos e grupos.

O cenário de polarização política tende a colocar em lados opostos redistribuição e reconhecimento (FRASER, 2006, 2008).

A autora se contrapõe a esta tendência ao argumentar que para o exercício da justiça social é preciso que tanto redistribuição quanto reconhecimento estejam na agenda dos movimentos reivindicatórios.

Não seria possível, segundo Fraser, fazer qualquer alusão à injustiça social sem que se observe que as sociedades contemporâneas são atravessadas por organismos econômico e cultural, que produzem tipos diferentes de injustiças e que combatê-los individualmente não seria o suficiente.

Isso não significa que os tais campos não sejam diferenciados entre si. Porém, apesar das particularidades existentes, nada impede que a redistribuição gere injustiças relacionadas ao reconhecimento ou vice-versa.

Cabe salientar que esta influência não seria profunda a ponto de ser a matriz das injustiças. O que é importante frisar nesta questão é: uma não exclui a outra.

É preciso entender a distinção, porém sem analisá-las de forma excludente. Somente assim se tem uma visão ampliada do grau de injustiças sociais sofridas.

Tais demandas não podem ser colocadas como opostas – nem como ideologia, nem como reivindicação – nenhum destes dos campos teria primazia sobre o outro, por este motivo deriva a necessidade em fazer com que ambas questões caminhem juntas.

*Cristiane Lourenço – Assistente Social
Doutoranda – Programa de Estudos Pós Graduados em Política Social da Universidade Federal Fluminense – UFF

Referências bibliográficas:
BODSTEIN, Regina Celia. Cidadania e modernidade: emergência da questão social na agenda pública. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro: v. 13. n. 2, pp. 185-204, 1997.
COUTINHO, Carlos Nelson. Cidadania e modernidade. Revista Perspectivas, São Paulo: v. 22 pp. 41-29, 1999.
FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça numa era “pós socialista. Cadernos de campo, São Paulo: n. 14/15, p. 231-239, 2006.
_. La justiça social em la era de la política de identidad: redistribuición, reconocimiento y participación. Revista de Trabajo. año 4, n. 6. ago/dec 2008.
KYMLICKA, Will & NORMAN, Wayne (1997). El retorno del ciudadano. Una revisión de la producción reciente en teoría de la ciudadanía. La Política, no. 3: Ciudadanía. El debate contemporáneo. Barcelona: Paidós, 1997. MARSHALL, Thomas Humphrey. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1967.
MELLO, Leonel Itaussu Almeida. Jonh Locke e o individualismo liberal. In: WEFFORT, Francisco C. Os clássicos da política – volume 1, São Paulo: Ártica, 2006.
SANTOS, Boaventura de Sousa. & AVRITZER, Leonardo. Introdução: Para ampliar o cânone democrático. In: SANTOS, Boaventura de Sousa Santos (org.). Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2003.
SOARES, Gisele Silva. Entre o projeto de modernidade e a efetivação da democracia: marcas deixadas na construção da vida social brasileira. Revista Serviço Social e Sociedade. São Paulo: n.109, jan./mar. 2012

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