No decorrer da década de 1990, a luta pela ampliação da cidadania ganhou ênfase devido, principalmente, ao aumento da participação dos novos atores sociais no processo decisório de responsabilidade social, dando novas formas a maneira de se exercê-la.

A emergência de novos movimentos sociais como o ambientalismo, o feminismo, da população negra e do movimento social Lgbtqia+, entre outros, na luta pelo direito à igualdade e pelo reconhecimento de diferenças específicas, encontrou importante apoio na redefinição do conceito Cidadania, trazendo novos significados para a relação entre cultura e política como forma de transformação da realidade.
Como observa Herkenhoff (2001, p. 14), na sociedade brasileira, não está somente crescendo uma “consciência individual de cidadania”, o fato mais relevante é que cresce no povo, a “consciência coletiva da cidadania”, pois, não é um só que exige e pleiteia, as solicitações, as petições, os protestos são coletivos, solidários, organizados em redes ou em teia, produzindo um novo princípio ético-político.
Segundo Baierle (2000), este princípio tem em seus fundamentos o surgimento de um cidadão de novo tipo, uma nova relação entre público e privado, pois se trata de uma ética que se desenvolve a partir de questões muito concretas que surgem em espaços onde:
…as pessoas não se reúnem só porque gostam de estar juntas, por um gesto de solidariedade cristã, embora muitas vezes existente e válida. Elas se reúnem porque precisam, porque têm necessidades. E discutindo suas necessidades constroem interesses coletivos, descobrem causas e consequências, aprendem a falar, a ouvir, a planejar. Sua ação produz mudanças concretas que melhoram a sua vida. A consciência de saber-se autor de transformações na sua rua, no seu bairro, na sua cidade é ferramenta fundamental através da qual forja-se este novo princípio ético-político, estruturando uma solidariedade social e racionalmente construída (BAIERLE, 2000, p. 212).
Em sua perspectiva histórica, a cidadania tem assumido diversos significados e vem sofrendo várias transformações em seu conteúdo. Foi inicialmente analisada por T. H. Marshall (1967).
Este autor mostra a interconexão entre o desenvolvimento do estado-nação inglês e a ampliação dos direitos de cidadania, estabelecendo uma progressão histórica que implicou primeiramente a extensão dos direitos civis, conquistados no século XVII; uma segunda etapa de expansão dos direitos políticos, alcançados no século XIX; e finalmente, os direitos de segunda geração, os direitos sociais, econômicos ou de crédito, conquistados no século XX a partir das lutas dos movimentos operários e sindicais.
Sendo a cidadania civil composta dos direitos necessários ao exercício da liberdade individual: ir e vir, imprensa, pensamento e, ainda o acesso à justiça como forma de sua garantia e concretude.
A cidadania política relacionada ao direito de participação, seja no sentido de ser eleitor ou de ser eleito.
Por fim, a parte social da cidadania refere-se aos direitos que visam estabelecer um mínimo de bem-estar social, determinado em cada sociedade.
Nesta mesma perspectiva, Jelin (1996) estabelece uma correlação entre a hipótese de expansão histórica dos direitos, elencadas por Marshall, com a correspondente terminologia utilizada no âmbito das Nações Unidas, onde se fala de gerações de direitos.
Nesta classificação, os de “primeira geração” são fundamentalmente os direitos civis e políticos; os de “segunda geração” são os direitos econômicos, sociais e culturais, que exigem um papel ativo do Estado para assegurar as condições materiais requeridas para o exercício dos anteriores. Os da “terceira geração” (paz, desenvolvimento, meio ambiente) e de “quarta geração” (direito dos povos) são de outra natureza, já que fazem referência a fenômenos globais e coletivos.
Como dito acima, o conceito cidadania assumiu nas duas últimas décadas do século XX e início do século XXI um importante papel de elemento articulador entre as demandas sociais surgidas no âmbito da sociedade civil e o âmbito da esfera governamental, sendo, por isso, utilizada como estratégia de luta, na qual há a redefinição não só do sistema político, mas acima de tudo, há o estabelecimento de uma discussão ampla em torno da relação entre cultura e política, das práticas econômicas, sociais e culturais para fins de mudança social.
No que concerne ao âmbito dessa discussão acerca do processo de Afrocidadanização, expressas pelas novas formas de exercício da cidadania, chamo a atenção para a concepção de cidadania ampliada, presente nas análises de DAGNINO (2000).
Para esta autora, os movimentos populares urbanos, foram instrumentais na construção de uma nova concepção de “cidadania democrática”, através da qual se reivindica direitos na sociedade e não apenas do Estado, e que contesta as rígidas hierarquias sociais que ditam lugares fixos na sociedade para seus (não) cidadãos com base em critérios de classe, raça e gênero.
Aponta ainda, que as mudanças culturais foram fundamentais como elemento político para o processo de democratização, como meio de confrontar a cultura autoritária, atribuindo novos significados às noções de direitos, espaço público e privado, formas de sociabilidade, ética, igualdade e diferença. A este propósito afirma que,
O autoritarismo social engendra formas de sociabilidade numa cultura autoritária de exclusão que subjaz ao conjunto das práticas sociais e reproduz a desigualdade nas relações sociais em todos os seus níveis. Nesse sentido, sua eliminação constitui um desafio fundamental para a efetiva democratização da sociedade. A consideração dessa dimensão implica desde logo uma redefinição daquilo que é normalmente visto como o terreno da política e das relações de poder a serem transformadas. E, fundamentalmente, significa uma ampliação e aprofundamento da concepção de democracia, de modo a incluir o conjunto das práticas sociais e culturais, uma concepção de democracia que transcende o nível institucional formal e se debruça sobre o conjunto das relações sociais permeadas pelo autoritarismo social e não apenas pela exclusão política no sentido estrito (DAGNINO, 2000, p. 32).
A autora utiliza o conceito de “política cultural” para chamar a atenção para o laço constitutivo entre cultura e política, bem como para a redefinição de política que essa visão implica.
Segundo a autora, esse laço constitutivo significa que a cultura, entendida como concepção de mundo, como conjunto de significados que integram práticas sociais, deve considerar as relações de poder embutidas nessas práticas. Desse modo,
Interpretamos política cultural como o processo posto em ação quando conjunto de atores moldados e encarnando diferentes significados e práticas culturais entram em conflito uns com os outros. Essa concepção supõe que significados e práticas podem ser a fonte de processos que devem ser aceitos como políticos. A cultura é política porque os significados são constitutivos dos processos que, implícita ou explicitamente, buscam redefinir o poder social. Isto é, quando apresentam concepções alternativas de mulher, natureza, “raça”, economia, democracia ou “cidadania”, que desestabilizam os significados culturais dominantes (ALVAREZ, DAGNINO e ESCOBAR, 2000, p. 24).
Acrescenta ainda, que a compreensão da configuração dessas relações de poder não é possível sem o reconhecimento de seu caráter cultural ativo, que expressam, produzem e comunicam significados. Assim, “a expressão ‘política cultural’ significaria o processo pelo qual o cultural se torna fato político” (ALVAREZ, DAGNINO E ESCOBAR, 2000, p. 17). E ainda segundo a mesma autora,
Quando o terreno da cultura é reconhecido como político e como lócus da constituição de diferentes sujeitos políticos, quando as transformações culturais são vistas como alvos da luta política e a luta cultural como instrumento para a mudança política, está em marcha uma nova definição da relação entre cultura e política. Enfatizar as implicações culturais significa reconhecer a capacidade dos movimentos sociais de produzir novas visões de uma sociedade democrática, na medida em que eles identificam a ordem social existente como limitadora e excludente com relação a seus valores e interesses. Para os setores excluídos da sociedade brasileira, a percepção da relevância política dos significados culturais embutidos nas práticas sociais faz parte de sua vida cotidiana (DAGNINO, 2000, p. 78-82).
Ao analisar a política cultural dos movimentos sociais, a autora procura avaliar o alcance das lutas pela democratização da nossa sociedade para iluminar as implicações menos visíveis e, com frequência, negligenciadas das lutas pela cidadania. Para ela, os processos de tradução das agendas dos movimentos sociais em políticas e de redefinição do significado de desenvolvimento ou cidadão, acarretam o estabelecimento de uma “política cultural”, que atribui uma relação entre política e cultura como potencial para promover mudança social.
O conceito cidadania se transforma em uma estratégia política, enfatizado em seu caráter de construção histórica, expressos pelos interesses e práticas concretas, uma resposta à dinâmica dos conflitos reais e da luta política vivida pela sociedade.
Para decifrá-lo, a autora elenca alguns pontos conceituais sobre a “cidadania” dos anos 1990:
a) Refere-se à noção de direitos, assumindo uma redefinição da ideia de direitos, cujo ponto de partida é a concepção de direitos a ter direitos, que não se limita a provisões legais, ao acesso a direitos definidos previamente ou à efetiva implementação de direitos abstratos, incluindo a invenção/criação de novos direitos, que surgem de lutas específicas e de suas práticas concretas. Além disso, essa redefinição inclui não somente o direito à igualdade, como também o direito à diferença, que especifica, aprofunda e amplia o direito à igualdade;
b) Requer a constituição de sujeitos sociais ativos (agentes políticos), definindo o que consideram ser seus direitos e lutando para seu reconhecimento enquanto tais. Nesse sentido, é uma estratégia dos não-cidadãos, dos excluídos, uma “cidadania” “desde baixo”;
c) Transcende uma referência central no conceito liberal: a reivindicação ao acesso, inclusão, participação e pertencimento a um sistema político já dado. O que está em jogo, de fato, é o direito de participar na própria definição desse sistema, para definir de que queremos ser membros, isto é, a invenção de uma nova sociedade. O reconhecimento dos direitos de “cidadania”, tal como é definida por aqueles que são excluídos dela no Brasil de hoje, aponta para transformações radicais em nossa sociedade e em sua estrutura de relações de poder;
d) Ênfase na constituição de sujeitos, em tornar-se cidadãos, coloca novamente a questão da cultura democrática e aponta para uma outra distinção fundamental: a nova “cidadania” é um projeto para uma nova sociabilidade, não somente a incorporação no sistema político em sentido estrito, mas um formato mais igualitário de relações sociais em todos os níveis, inclusive novas regras para viver em sociedade. Isso implica também a constituição de uma dimensão pública da sociedade, em que os direitos possam consolidar-se como parâmetros públicos para a interlocução, o debate e a negociação de conflitos, tornando possível a reconfiguração de uma dimensão ética da vida social (DAGNINO, 2000, p. 85-89).
Observadas estas transformações recentemente ocorridas no entendimento da cidadania, pode-se dizer, que a cidadania deve ser entendida como a base, a partir da qual construímos nossa condição de indivíduos, social e identitariamente.
Acima de tudo, cidadania é o conceito a partir do qual se estabelecem nossos direitos e deveres e são definidas nossa liberdade e igualdade, além dos termos da solidariedade social.
Assim entendida, a cidadania se apresenta como uma concepção alternativa, que vê nas lutas democráticas uma redefinição não apenas do sistema político, mas também, das práticas econômicas, sociais e culturais que engendram uma nova ordem democrática para a sociedade como um todo.
Há, portanto, uma ampla gama de esferas públicas possíveis, onde a cidadania pode ser exercida e os interesses dos indivíduos podem, não somente ser representados, mas também fundamentalmente remodelados (DAGNINO, 2000, p. 16).
O cerne do processo para se chegar a Afrocidadanização, corresponde ao conjunto de novos sentidos do conceito de cidadania como foram discutidos.
Esta é uma das suas concepções mais abrangentes, que pressupõe formas de participação e resistência, conformando laços especiais de pertencimentos baseados na solidariedade, na virtude cívica, no empoderamento e no engajamento, como instrumentos de transformação social.
Referências bibliográficas
BAIERLE, Sérgio Gregório. A Explosão da Experiência: Emergência de um novo princípio ético-político nos movimentos sociais urbanos em Porto Alegre. In: DAGNINO, E.; ALVARES, S. e ESCOBAR, A. (Orgs.). Cultura e política nos movimentos sociais latino-americanos. Novas leituras. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2000, p. 185-287.
DAGNINO, Evelina, ALVARES, Sonia E. ESCOBAR, Arturo. O Cultural e o político nos movimentos sociais latino-americanos. In: Cultura e política no movimentos sociais latino-americanos. Sonia E. Alvarez, Evelina Dagnino, Arturo Escobar (organizadores). Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000, pp. 15 – 57.
_ Cultura, cidadania e democracia: a transformação dos discursos e práticas na esquerda latino-americana. In: Cultura e política no movimentos sociais latino-americanos. Sonia E. Alvarez, Evelina Dagnino, Arturo Escobar (organizadores). Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000, pp. 61 -102.
GUIMARÃES, Reinaldo da Silva. Afrocidadanização: ações afirmativas e trajetórias de vida no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo; Selo Negro, 2013.
HERKENHOFF, João Baptista. Como funciona a cidadania. Manaus: Editora Valer, 2001.
JELIN, Elizabeth. cidadania e alteridade: o reconhecimento da pluralidade. In: Revista do patrimônio histórico e artístico nacional; número 24 – cidadania. Brasília: IPHAN, 1996.
MARSHALL, Thomas Humprey. Cidadania, classe e status. Tradução de Meton Porto Gadelha. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.
Doutor em Serviço Social (PUC-Rio); Mestre em Sociologia (IUPERJ); Professor Adjunto no UNIAN; Avaliador do INEP/MEC; autor dos livros: Afrocidadanização: ações afirmativa e Trajetórias e Vida no Rio de Janeiro; Porque para Negro Sim! As Cotas Raciais como instrumento para a Afrocidadanização.