Corpos negros no Brasil: o paradoxo entre a Bio e a Necro – política

Compreender o racismo e sua existência é compreender a história de escravidão existente nos séculos anteriores no Brasil e entender a prática de menosprezo à vida das pessoas negras promovida pelo Estado no século XXI.

Autores: Luciene Gustavo Silva* e Reinaldo da Silva Guimarães**

A construção do pensamento social que permeia o tempo presente no que tange a discussão sobre o racismo, apresenta-se a partir de um passado que teve seu processo iniciado pela colonização no território brasileiro.

A exploração pelas terras e a busca por desenvolvimento social e econômico pela colônia portuguesa, deu-se por meio da violência exercida contra os povos originários e contra os negros mediante a diáspora e a sua escravização.

O trajeto pelo Atlântico no navio tumbeiro aconteceu de forma para além de violenta, desumana e insalubre, o que ocasionou em muitos negros o banzo e o suicídio.

Ao longo dos contextos históricos em solo brasileiro, os povos africanos sofreram diversas formas de desonra a dignidade da pessoa humana.

Foram desrespeitados e vilipendiados dos seus direitos no que se refere: a liberdade, da constituição familiar, dos seus saberes, das suas culturas, das suas práticas religiosas, tendo em vista que, eram pertencentes ao continente africano, porém, pertencentes a diversas etnias com hábitos, costumes e linguísticas diferenciadas.

Ao serem descarregados em solo brasileiro, atos desumanos e perversos permearam aos corpos negros que continuaram sendo castigados e punidos com violência.

Neste empreendimento capitalista, os corpos negros foram coisificados e transformados em mercadoria, tratados como objetos de consumo pelos colonizadores e exploradores deste território.

Assim, pode-se questionar a coloniza-ação no Brasil, que atravessa ao longo dos tempos. Tendo em vista que, no contexto contemporâneo após abolição da escravatura, a ação violenta permanece sobre os corpos negros.

A população negra padece de uma ideologia social denominada como racismo que promove a desigualdade sócio-racial, preconceito e discriminação racial que usa como base o fenótipo e se prevalece ancorado pelo mito da democracia racial. Deste modo, o racismo na sociedade brasileira apresenta-se revestido de múltiplas formas, seja pelo alto índice de analfabetismo, pelo desemprego, pelo forte crescimento no sistema carcerário, e do genocídio da juventude negra pela ação coercitiva do estado.

Quanto vale uma vida?

Será que uma vida negra teria valor?

E, em se tratando da juventude negra, qual seria o valor desses corpos?
A Vida da juventude negra encontra-se a frente de situações que nos faz refletir sobre as ações racistas, conforme o apontamento do Conselho Federal de Serviço Social – CFESS (2016):

Os/as jovens negros/as são as maiores vítimas de homicídios no país. A invisibilização e naturalização dessas mortes revelam o “silêncio” existente não se configura, apenas em omissão, fato este que já seria grave violação de direitos humanos, mas, sobretudo, em ação, ou seja, ação de consentir, de permitir, de deixar matar e deixar morrer (p.7).

Foto: Reprodução da internet

Vida: vita, de vivere – existir, viver

Neste estudo, a palavra Vida oriunda do latim vita, de vivere – existir, viver, apresenta-se associada à vida humana apresentada nos sentido de ser e existir.

A vida como direito e como dignidade, passou a ser mencionado como direitos fundamentais do ser humano após a segunda guerra mundial, em documentos internacionais: Declaração Universal dos Direitos Humanos, na organização das nações unidas (ONU), conforme o art. 3º, onde estabelece que: “Toda pessoa tem direito à vida, a liberdade e a segurança pessoal”;

a) Declaração Americana dos Direitos e deveres do Homem (Pacto de São José da Costa Rica) – MRE Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969, ratificado pelo Brasil no decreto nº 678, de 06/11/1992 estabelece:
• art. 1º (2) – “Para os efeitos desta Convenção, pessoa é todo ser humano”;
• art. 4º – “Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente”;
• art. 5º (1) – “Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua integridade física, psíquica e moral”.

No documento interno brasileiro, o direito a vida e a vida digna se encontra tutelada na Constituição Federal Brasileira de 1988, no art. 1º – A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, no qual se constitui em Estado democrático de direito e tem como fundamentos, no inciso III, “a dignidade da pessoa humana”.

A seguir no art. 5º estabelece: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes…”.

Ambos os documentos reconhecem a vida humana como um direito fundamental, no qual esse direito seria garantido pelo Estado/Nação, por intermédio do contrato social, porém, no exercício da garantia deste direito está na organização social do Estado, que utiliza como recurso o controle social exercendo o controle dos corpos.

Verifica-se que à sua integral proteção tem sido uma preocupação constante nas legislações nacional e internacional, visando assegurar a inviolabilidade ao direito à vida e à vida com dignidade.

Entretanto, o controle dos corpos intercorre por intermédio da tecnologia que possibilitaria a aplicação do biopoder conforme o pensamento de Foucault (2005) em “fazer morrer e deixar viver”, implantado pela biopolítica que seria o principal instrumento utilizado em uma relação de poder para manter o controle da população no que se refere como mecanismos controlador configurando “racismo de Estado”.

Desta forma, a vida e a morte da população seria um direito concedido mediante o desejo do soberano.

O racismo no Brasil passou a ser utilizado como um mecanismo fundamental pelo Estado a partir da abolição da escravatura, como uma emergência ao exercício do biopoder.

Na perspectiva de Foucault (2005) o racismo “É, primeiro, o meio de introduzir afinal, nesse domínio da vida de que o poder se incumbiu um corte: entre o que deve viver e o que deve morrer”.

E assim, esse mecanismo viabilizaria a normalização de tirar a vida como uma condição de aceitabilidade em uma sociedade. O autor aponta que o “racismo vai se desenvolver primo com a colonização, ou seja, com o genocídio colonizador”.

O Racismo de Estado e o paradoxo da Necro – política

Mediante o exposto sobre o racismo de Estado como um instrumento para exercer o biopoder na tomada de decisão de quem deve “fazer morrer e deixar viver”.

Segundo o atlas da violência (2019) há um indicativo do alto índice de mortandade dos corpos negros, como se suas vidas estivessem à disposição da biopolítica.

No entanto o filósofo Achille Mbembe se opõe ao pensamento desta governação como a política da Bios, tendo em vista que, este modelo de política deveria salvaguardar as vidas, mas, Ele aponta que este modelo de intervenção destaca-se como o paradoxo da política da Necro – a Necropolítica – política da morte, e não a política da vida como sugere Foucault.

Para Mbembe esta ideologia de poder – o Racismo seria conceituado como:

[…] uma tecnologia destinada a permitir o exercício do biopoder, “este velho direito soberano de matar”. Na economia do biopoder, a função do racismo é regular a distribuição da morte e torna possíveis as funções assassinas do Estado. Segundo Foucault, essa é “a condição para aceitabilidade do fazer morrer” (2018, p. 18).

Mediante ao pensamento do autor, a regulação da morte teria iniciado na diáspora através da escravização dos povos tirados de áfrica, este ato violento do colonizador, teria sido o primeiro momento de aplicação da biopolítica e o paradoxo do estado de exceção ao executar a necropolítica.

No entanto, aos fatos sociais ocorridos na contemporaneidade nos induz a questionar e refletir se, o fim da escravidão proporcionou a liberdade, a integração e a cidadania.

Diante deste fato, os colonizadores transformaram os africanos e os afro-brasileiros em negros, e assim, os corpos negros foram reduzidos em um…

Produto de um maquinário social e técnico indissociável do capitalismo, de sua emergência e globalização, esse termo foi inventado para significar exclusão, embrutecimento e degradação, ou seja, um limite sempre conjurado e abominado. Humilhado e profundamente desonrado, o negro é, na ordem da modernidade, o único de todos os humanos cuja carne foi transformada em coisa e o espírito em mercadoria – a cripta viva do capital (MBEMBE, 2019, p. 21).

Essas são artimanhas violentas elaboradas pelos colonizadores para desonrar o devir do negro na sociedade brasileira que ocorre articulada com o sistema capitalista.

Outro mecanismo da necropolítica estaria relacionado às formas de opressão aos territórios, com base na pobreza, na raça e na classe social, por ações repressivas e autoritárias do Estado – com políticas de segurança que promove a insegurança, que geram discriminação ambiental e o genocídio povo negro. Esses espaços geográficos são estigmatizados e por ser considerado como:

[…] um lugar de má fama, povoado por homens de má reputação. Lá eles nascem, pouco importa onde ou como; morrem lá, não importa onde ou como. É um mundo sem espaço; os homens vivem uns sobre os outros. A cidade do colonizado é uma cidade com fome, fome de pão, de carne, de sapatos, de carvão, de luz. A cidade do colonizado é uma vila agachada, uma cidade ajoelhada (FANON, 1991 apud MBEMBE, 2018 p. 41).

Nesses territórios vulnerabilizados, o controle e a vigilância encontram-se regulados, a partir da tomada de decisão do Estado, por meio da “capacidade de definir quem importa e quem não importam, quem é descartável e quem não é” (MBEMBE, 2018, p. 41), fazendo o uso de aparatos tecnológicos e de “potências bélicas”, voltados para hierarquizar e transformando-os em zona de conflito e proliferando a violência por ações repressivas e autoritárias do Estado – com políticas de segurança e de insegurança, que promovem a discriminação racial e ambiental e o extermínio povo negro.

Todos os aparatos e técnicas utilizadas da necropolítica proporcionam segundo MBEMBE (2019) lucro ao capital que recorre a “subsídios raciais para executá-la”.

O racismo de Estado se dimensiona promovendo as tensões raciais e a necropolítica com a morte da população negra, que pode acontecer em diversas formas para obter o controle total dos corpos negros, entre as relações sócio-raciais e onde a morte pode ser de forma sutil, por meio da benevolência a partir da tentativa de necroafrocentricidade (morte dos elementos referenciais africanos trazidos na memória) e da desculturalização das culturas; ou por meio de atos violentos de destruição dos espaços de manifestações religiosas afro-brasileira.

A ideologia de poder recorre à pluralidade nas manifestações do racismo com o objetivo de manter a subalternidade da população negra, e consequentemente para manutenção do poder e da colonialidade.

Percebe-se que o racismo tem como base a estrutura social e que, desta forma, ocasiona a adesão e a manutenção da lógica ao pensamento e a ordem do dominante como estratégia de sobrevivência que alguns corpos são escolhidos para serem ceifados, ou mutilados, onde o direito à vida e dignidade da vida humana, seria negociado seja pela Bios ou pela Necro – política conforme os interesses do Estado.

O que nos faz refletir a importância das vidas negras e o quanto esses corpos contribuíram e contribuem para a riqueza da sociedade brasileira.

Cabe ressaltar que algumas políticas públicas foram pensadas, mas a quem elas atendiam? Não sabemos se essas políticas eram pensadas com viés direcionado a dignidade do ser humano ou apenas pelo viés econômico/industrial. E hoje, as políticas públicas dão conta de proporcionar uma igualdade sócio-racial?

Isto posto, observa-se que as formas de violência que se modificam e se transformam conforme os contextos históricos e, neste sentido, compreende-se a necropolítica como a materialização do racismo na contemporaneidade. Esta violência passou a ser um tema de alta precisão e lucratividade, no qual, constata-se o quanto é urgente e relevante o racismo compor a pauta da agenda política do Estado brasileiro.

A reflexão sobre a desvalorização dos corpos negros, não se pretende justificar o passado no presente, mas de evidenciar a importância da Afrocidadanização na construção do pensamento social e da efetivação dos direitos humanos e direitos sociais, no qual, faz-se fundamental proporcionar à cidadania e a ampliação por uma justiça social equitativa e, consequentemente, salvaguardar os Corpos Negros.

*Luciene Gustavo Silva – Pós-graduanda em Serviço Social – PUC-Rio; Graduada em Serviço Social pelo Centro Universitário Anhanguera de Niterói (UNIAN) – E-mail: lucienegustavo.seso2015@gmail.com
Autora do livro: CAPOEIRA: instrumento alternativo para fomentar a Afrocidadanização na perspectiva do Serviço Social. Novas Edições Acadêmicas, 2019, 62 p. CV: http://lattes.cnpq.br/3074567202026864

**Reinaldo da Silva Guimarães – Doutor em Serviço Social (PUC-Rio); Mestre em Sociologia (IUPERJ); professor adjunto no UNIAN; avaliador do INEP/MEC; autor dos livros: AFROCIDADANIZAÇÃO: ações afirmativa e trajetórias e vida no Rio de Janeiro e PORQUE PARA O NEGRO SIM! As Cotas Raciais como instrumento para a Afrocidadanização.
CV: http://lattes.cnpq.br/0847213852963062

Referências:
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 11 de setembro de 2020.
CFESS – Conselho Federal de Serviço Social. Série Assistente Social no combate ao preconceito racismo. Caderno 3. 19 p. Brasília (DF), 2016.
DUDH – Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: http://www.mp.go.gov.br/portalweb/hp/7/docs/declaracao_universal_dos_direitos_do_homem.pdf. Acesso em 11 de setembro de 2020.
FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. Curso no Collège de France (1975 – 1976). Martins Fontes, p. 285 – 315, São Paulo, 2005.
GUIMARÃES, Reinaldo da Silva. Afrocidadanização: ações afirmativas e trajetórias de vida no Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; 208 p. São Paulo: Selo Negro, 2013.
IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Atlas da violência 2019. / Organizadores: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Brasília: Rio de Janeiro: São Paulo: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; Fórum Brasileiro de Segurança Pública. 116 p. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/download/19/atlas-da-violencia-2019. Acesso em 12 de setembro de 2020.
MBEMBE, Achille. NECROPOLÍTICA: Biopolítica, soberania, estado de exceção, política da morte. – n -1 edições. org, 71 p. 2018.
MBEMBE, Achille. CRÍTICA DA RAZÃO NEGRA. – n-1 edições. org, 320 p. 2019.
SILVA, Luciene Gustavo. CAPOEIRA: instrumento alternativo para fomentar a Afrocidadanização na perspectiva do Serviço Social. Novas Edições Acadêmicas, 2019, 62 p.

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