Autor: Renato Ferreira*
O racismo estrutural se desenvolveu como uma espécie de pilar ideológico na formação política, econômica e jurídica da sociedade brasileira.
A discriminação colonial mediou por centenas de anos e diversas gerações as relações poder estabelecidas, hierarquizando-as injustamente com base na desumanização e subjugação da população negra.
O fim da escravidão, contudo, não foi sucedido por políticas públicas antirracistas que teriam contribuído para romper com os séculos de atraso que nos prenderam e nos prendem até hoje aos grilhões de uma pré-modernidade legada pela injustiça de nossos colonizadores
A secular inércia pública contra a discriminação, a baixa densidade do Estado de Bem-Estar Social brasileiro, somados a uma boa dose de “democracia racial”, consolidaram uma abolição inconclusa e, por essa narrativa histórica, cristalizaram o apartheid que nos coube: disfarçado, sinuoso, mas terrivelmente eficaz, não só para permitir que muitas desigualdades continuassem baseadas nas diferenças, mas também para sustentar uma enorme invisibilidade político-jurídica para o problema.
Dessa forma, estabeleceu-se uma profunda letargia nos governantes, impedindo a construção de normas e políticas públicas que nos teriam feito romper com desigualdades incompatíveis com o estado democrático de direito1 .
Neste sentido, o processo de construção de um direito antirracista no Brasil é relativamente recente. Somente a partir dos anos 1980, os Movimentos Sociais Negros conseguiram pautar o Estado para essa agenda2.
Dois marcos históricos merecem destaque no referido processo, o primeiro é o período de elaboração da Constituição de 1988, que contribui significativamente para iniciar a criação de normas que criminalizam o racismo, valorizam a diversidade racial e cultural afro-brasileira, dando mais efetividade ao combate à discriminação.
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Já o segundo período remonta à Conferência de Durban na África do Sul, em 2001 4, que abriu campo para construção e efetividade das normas de promoção da igualdade racial em diversas políticas públicas, nas universidades e no serviço público 5.
Felizmente o processo de lutas antirracistas empreendido pelos movimentos socais negros vem paulatinamente sendo reconhecido pelo Estado e promovendo avanços significativos para promoção da cidadania dos afrodescendentes, fato que é positivo para todo país. Neste sentido, políticas afirmativas começaram a ser adotadas com o objetivo de fomentar a diversidade racial em instituições.
É inquestionável que a discriminação estrutural existente em nossa sociedade se reflete também no sistema eleitoral.
Pesquisas apontam que embora 55,7% dos brasileiros sejam negros (pretos e pardos), eles representaram apenas 27% dos eleitos em 2018.
No Congresso Nacional só 17,8% dos parlamentares são negros. Todas as cadeiras da Câmara dos Deputados e do Senado Federal somam 594, mas apenas 106 são ocupadas por pessoas negras.
Outra pesquisa do Grupo de Estudo Multidisciplinar da Ação Afirmativa, Geema, (UERJ) mostrou maior presença de candidaturas brancas, tanto nos partidos de esquerda, quanto nos de direita. Além disto, as candidaturas brancas, em média, receberam 216% a mais de recursos do que as negras.
Estes dados revelam que existe um déficit democrático por conta da baixa representação de negros no poder político.
Os critérios historicamente utilizados pelos partidos funcionam como uma espécie de filtro racial na medida que excluem candidaturas negras de concorrerem a cargo político.
Desta forma, quanto mais alto o cargo, menor a participação de negros concorrendo e, por consequência, menor a representatividade nas diversas funções políticas.
Outro aspecto relevante é que, de acordo com o Tribunal Superior Eleitoral, o total de recursos distribuídos entre os 33 partidos para as campanhas em 2020 será superior a dois bilhões de reais.
Este dinheiro do fundo eleitoral é recurso público proveniente de impostos pagos por todos os brasileiros indistintamente.
Neste sentido, é mais do que justo e necessário que os referidos recursos sejam distribuídos de modo equitativo promovendo na política, a diversidade de gênero e raça que há na sociedade brasileira.
Por conta disto, recentemente, entidades do movimento negro foram democraticamente ao Judiciário exigir diversidade racial nas candidaturas partidárias.
O pleito perdurou alguns anos, mas o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu do modo definitivo a favor das políticas afirmativas de gênero e raça nas candidaturas.
A partir deste ano os recursos públicos do fundo eleitoral, bem como o tempo de rádio e TV, deverão ser distribuídos de maneira proporcional à quantidade de candidatos homens e mulheres e também de negros e brancos.
A exclusão de negros da política não pode perpetuar um verdadeiro estado de coisas inconstitucionais.
Os partidos políticos devem tratar equitativamente candidatos e candidatas resguardando o regime democrático e os direitos fundamentais, ainda mais quando se está falando de grande quantidade de recursos públicos provenientes do fundo eleitoral que é constituído dos impostos pagos por toda a sociedade.
O desafio que surge é fazer com que os partidos e seus diretórios cumpram a decisão da nossa Suprema Corte. Neste sentido, algumas medidas poderiam ser criadas visando executar de modo proativo a determinação judicial.
Os partidos deveriam, por exemplo, criar núcleos de gênero e raça e a partir daí adotar uma série de ações como promover um senso étnico racial, contratar consultores para monitorar a auto declaração e o tempo de mídia das candidaturas negras, promover cursos de formação para candidatos sobre a legislação e políticas públicas antirracistas, dentre outras medidas.
A promoção das pessoas negras nos processos político decisórios tem um potencial para democratizar a definição da agenda pública.
Assim, as leis e ações aprovadas pelos eleitos tendem a levar em conta fatos sociais importantes para boa parte da população, que terá suas demandas sociais atendidas pelo poder público.
A pluralidade de experiências trazidas por grupos tradicionalmente excluídos contribuirá para enriquecer a pauta política que tende a ganhar muito com as diferentes ações construídas com mais diversidade racial entre os representantes do povo.
* Advogado e Mestre em Políticas Públicas. Professor de Direito Constitucional. Especialista em Direito e Relações Raciais.
1.Conforme Ferreira “10 anos de promoção da igualdade racial, balanços e desafios”, em Emir Sader (Org) “10 anos de governos pós neoliberais”. Disponível em https://www.boitempoeditorial.com.br/produto/10-anos-de-governos-pos-neoliberais-no-brasil-448. Consultado em 20.08.2019.
2.Uma boa reflexão sobre o avanço da luta antirracista no contexto da promoção da igualdade racial é fornecida por Amauri Mendes no artigo “toma que o filho é seu”. Disponível em: <www.abpn. org.br/Revista>. Acesso em 14 jan. 2018.
3. A Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial determina aos Estados membros adotarem medidas para combater a discriminação direta e ao mesmo tempo construírem medidas para reduzir as desigualdades raciais, que são as ações afirmativas. É importante registrar que a Organização das Nações Unidas criou a Década Internacional dos Afrodescendetes (2015-2024) afirmando que a comunidade internacional reconhece os povos afrodescendentes como um grupo distinto, cujos Direitos Humanos precisam ser desenvolvidos e protegidos. Nesta quadra histórica de lutas contra o racismo é fundamental entender que a promoção da igualdade racial é questão de Estado e não de Governo, independentemente de quem esteja no poder, não podemos permitir retrocessos.
4. Já é consenso entre os pesquisadores das relações raciais no Brasil que a Conferência Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Conexa que foi convocada pela Organização das Nações Unidas (ONU) e ocorreu em Durban na África do Sul de agosto a setembro de 2001 (configurando-se como um grande fórum para orientar os países na elaboração de políticas públicas de combate a todas as formas de discriminação) é o grande marco para a significativa a adoção de políticas de promoção de igualdade racial. A Conferência reuniu mais de 2500 representantes de 170 países, incluindo 16 Chefes de Estado, cerca de 4000 representantes de 450 organizações não governamentais (ONG) e mais de 1300 jornalistas, bem como representantes de organismos do sistema das Nações Unidas, instituições nacionais de direitos humanos e públicos em geral. No total, 18 810 pessoas de todo o mundo foram acreditadas para assistir aos trabalhos da Conferência.
Bibliografia
BRASIL, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Racismo, conceito, evolução e tratamento jurídico. STF. Atualizada até o DJE de 2 de agosto de 2018 e o Informativo STF 908. Brasília 2018. Disponível em http://www.stf.jus.br/arquivo/ cms/publicacaoPublicacao Tematica/anexo/ igualdade _ etnico _ racial.pdf. Consultado em 10.08.2019.
FERREIRA. Renato (Org.) Ações Afirmativas:a questão das cotas, análises jurídicas de um dos assuntos mais controvertidos da atualidade. Niterói, RJ. Editora Impetus, 2011.
GUIMARÃES, Reinaldo da Silva. Afrocidadanização – Ações Afirmativas e Trajetórias de Vida no Rio de Janeiro – PUC Rio, 2017.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. Disponível em https://www.procomum.org/wp-content/uploads/2019/04/necropolitica.pdf. Consultado em 20.09.2020.