O empoderamento da identidade racial da pessoa negra e Afrocidadanização

Como indivíduos da população negra se percebem, se reconhecem e dão concretude ao seu pertencimento racial, é uma luta travada no cotidiano em um país marcado fortemente pelo mito da democracia racial.

Uma dimensão fundamental na discussão sobre a questão das desigualdades raciais em suas diversas manifestações, assim como, para o processo de fomento da Afrocidadanização, em seu primeiro alicerce, está no entendimento de como os indivíduos da população negra se percebem, se reconhecem e dão concretude ao seu pertencimento racial.

Essa compreensão é significativamente importante, não só para a percepção dos casos de racismo, mas principalmente, para o processo de luta e combate dessas práticas sociais. Assim, no que se segue, discutiremos, em seus vários aspectos, como se dá o processo de construção, afirmação e empoderamento da identidade racial negra positiva.

Há uma massa de produção sobre relações raciais no Brasil que apontam para as históricas dificuldades que os indivíduos da população negra enfrentam, e enfrentaram, para a construção de uma identidade racial negra.

As razões para estas dificuldades são, naturalmente, de muitas ordens, mas aquela que se nos apresenta como a mais contundente tem a ver com os costumes e habitus cultural de nossa sociedade, fortemente marcado pelo ideal de branqueamento e pelo mito da democracia racial.
Sobre essa pretensa democracia racial, Abdias Nascimento afirma ser:

Uma “democracia” cuja artificialidade se expõe para quem quiser ver; só um dos elementos que a constituíram detém todo o poder em todos os níveis político-econômico: o branco. Os brancos controlam os meios de disseminar as informações; o aparelho educacional; eles formulam os conceitos, as armas e os valores do país. Não está patente que neste exclusivismo se radica o domínio quase absoluto desfrutado por algo tão falso quanto essa espécie de “democracia racial” (NASCIMENTO, 2002, p. 86).

Como se dá o processo de reconhecimento e pertencimento racial?

A construção de identidade racial é um processo social, cultural e político, implicada em relações de poder, a partir de uma dinâmica de identificações construídas através de um vasto conjunto de significações e de práticas discursivas.

Estas últimas são derivadas da posição que o indivíduo se atribui no mundo, implicando sentimentos de pertença e de auto-estima, através dos quais o indivíduo vai se construindo a partir de suas referências culturais e de suas representações, complementando-se em suas relações com os outros nas suas ligações inter-relacionais na sociedade.

Para Stuart Hall (2004), a identidade corresponde a um processo de identificações, constituído por dois aspectos fundamentais: por um lado, é construída na linguagem do senso comum a partir do reconhecimento de alguma origem comum, ou de características que são partilhadas com outros grupos ou pessoas, ou ainda a partir de um mesmo ideal.

Por outro, é vista pela abordagem discursiva, como uma construção, como um processo nunca complementado, como algo sempre “em processo”.

Ilustração: Reg Coimbra


O processo de construção da identidade pode ser entendido também como uma “metamorfose” que “representa a pessoa e a engendra”, e não simplesmente como uma representação da pessoa; uma formulação de um centro estático da dinâmica entre o meio social, a cultura e a subjetividade individual (CIAMPA, 1987, apud, NASCIMENTO, 2003, p. 35).

Para Ricardo Franklin Ferreira (2000, p.47), a identidade é vista como uma categoria, além de pessoal, fundamentalmente social e política, considerada como uma referência em torno da qual o indivíduo se auto reconhece e se constitui, estando em constante transformação e construída a partir de sua relação com o outro.

Portanto, para o autor, a construção da identidade não é uma simples representação do indivíduo, mas “uma dialética sem síntese”, sempre submetida à dinâmica do processo de viver.

Neste processo de construção da identidade fundamentada em uma dinâmica de identificações através da qual o indivíduo se reconhece e constrói a si e a seu mundo, o autor afirma que o indivíduo desenvolve uma identidade com um “sentido de autoria”.

A partir deste “sentido de autoria”, o desenvolvimento da identidade afrodescendente brasileira se dá em quatro estágios fundamentais: submissão, impacto, militância e articulação (FERREIRA, 2000, p. 69-84).

No estágio de “submissão” o referencial através do qual o afrodescendente constrói sua identidade são as crenças e os valores da cultura branca, vista como superior. Neste estágio, o indivíduo se submete a ideologia da visão dominante do mundo, concebendo sua inferioridade racial, desvalorizando e fugindo de sua identificação com o mundo negro.

Ainda neste estágio os problemas étnico-raciais são explicados pelo prisma da “culpabilidade da vítima”, cujas condições sociais e econômicas são encaradas como fruto da inépcia e da falta de capacidade pessoal dos indivíduos negros.

No estágio de “impacto” a identidade referenciada pelos valores brancos, modelada e sedimentada a partir do processo de socialização, que deixa a pessoa centrada e articulada nas situações da vida, começa a desestabilizar, através de experiências nas quais torna-se impossível negar a não-aceitação por parte do mundo branco, sugerindo nova direção no sentido de transformação ou ressocialização.

Nessa perspectiva, o autor propõe três fases nesta transformação:

1- A primeira é caracterizada pelo momento de impacto que ocorre com a tomada de consciência da discriminação, da não-funcionalidade da visão do branco como referência para a construção da estrutura pessoal e da necessidade do desenvolvimento de uma “nova identidade” racial;

2- A segunda fase, caracteriza-se pela luta para o desenvolvimento desta nova identidade, pelo abandono da identidade que vinha sendo construída no estágio anterior —de submissão—, com o reconhecimento da importância das qualidades étnico-raciais;

3- Na terceira fase, a pessoa passa a agir como se existisse uma “identidade negra” já definida externamente e que deve ser encontrada. Enfim, o estágio de “impacto” é uma fase intermediária que determina a morte do estágio de “submissão” e o afrodescendente, ou a pessoa “afrocentrada”, começa a emergir.

O reconhecimento de uma identidade racial referenciada em valores africanos, a ser desenvolvida, sinaliza a entrada da pessoa no estágio da “militância”.

A fase da “militância” é caracterizada pelo processo de intensa mudança na subjetividade do negro, no qual vão sendo demolidas velhas perspectivas e, ao mesmo tempo, passa a se desenvolver uma nova estrutura pessoal, referenciada em valores étnico-raciais de matrizes africanas.

Até esta fase, o negro estava submetido a uma “visão do negro” determinada pela cultura branca.

Como decorrência, sua maneira de agir era estereotipada, sendo a referência da pessoa negra uma referência “de grupo” definida externamente, levando-a a pensar, sentir e comportar-se de acordo com padrões idealizados por outros.

Portanto, o estágio da “militância” é importante para o desenvolvimento da identidade, porque a participação do militante favorece a recuperação dos valores da cultura e da história do negro para, mediante um processo de socialização, levá-lo a desenvolver uma identidade e uma auto-estima mais positivas.

Por fim, todos estes estágios definidos pelo autor, levam o indivíduo a desenvolver uma perspectiva afrocentrada não-estereotipada, com atitudes voltadas para a valorização das qualidades referentes à negritude, mais expansivas, mais abertas e menos defensivas.

Neste último estágio, definido como o da “articulação”, há o desenvolvimento de um novo processo de identificação, em que as matrizes africanas são salientadas.

A população negra torna-se o principal grupo de referência ao qual o indivíduo pertence, sendo seu vínculo com esse grupo determinado por qualidades do próprio grupo e, não mais, exclusivamente, por fatores externos a ele.

Ferreira (2000) destaca que esta nova identidade é construída a partir de três dinâmicas: (1) defender e proteger a pessoa de agressões psicológicas; (2) prover um sentido de pertença e ancoradouro social e (3) prover uma fundação, ou ponto de partida, para as transações com pessoas de culturas diferentes daquelas referenciadas em matrizes africanas.


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A dinâmica das identificações e o empoderamento racial

De acordo com Nascimento, (2003, p. 96-97), esta ideia de construção de uma identidade afrocentrada deriva da “teoria do centro”, que postula a necessidade de explicar a localização do sujeito, que não está referida a um lugar geográfico especifico, mas a uma condição e reconhecimento de pertencimento a determinado grupo social, que possibilita desenvolver uma postura própria a cada grupo social e fundamental na sua experiência histórica e cultural.

Nesta abordagem o conceito de “lugar” é fundamental porque dispensa o enfoque sobre a condição racial do sujeito, ou seja, “quem se localiza no ‘lugar’ da abordagem afrocentrada não precisa ser afrodescendente, assim como nem todo afrodescendente se posiciona nesse “lugar”.

Ainda para a autora, a construção da identidade afrocentrada é o que possibilita o conceito de “agência”, que denota protagonismo: o exercício da capacidade de pensar, criar, agir, participar e transformar a sociedade por força própria. A construção da identidade afrocentrada é o que possibilita essa “agência”, pois “o âmago do ‘racismo’ está numa sociedade hierárquica que se recusa a reconhecer a agência africana” (ASANTE, 1998, p. 8, apud, NASCIMENTO, 2003, p. 98).

Enfim, compreendida como uma dinâmica de identificações fundamentadas no “sentido de autoria” e de “agência”, a “identidade racial” é uma categoria central para se compreender como o indivíduo da população negra se constitui; constrói a sua auto-estima e se posiciona no mundo, que serve de referencial para as suas ações e atitudes.

A dinâmica da identificação racial no Brasil requer que se reconheça a diversidade de termos utilizado em seu cotidiano onde já se falou de 136 denominações raciais distintas, evidenciando a singularidade de como se definem racialmente os brasileiros.

Certamente pertencemos à “raça” humana, mas temos de compreender que as relações sociais baseadas em hierarquias e subordinações definem quem são os indivíduos que pertencem às sub-raças e determinam seu espaço na sociedade.

Nesse processo, pensar a identidade racial negra, é propor a construção e a afirmação de um sentido de pertencimento, decorrente de uma formação social, cultural e política, que tem a ver com o reconhecimento e a valorização das características positivas pertinentes a população negra, através das quais se tornem indivíduos afroconscientes e, como resultado disso, busquem materializar a Afrocidadanização.

Referências bibliográficas
FERREIRA, Ricardo Franklin. Afrodescendente: identidade em construção. São Paulo: EDUC; Rio de Janeiro: Pallas, 2000.
FONSECA, Denise. Identidade cultural e desenvolvimento sustentável: uma experiência Comunitária de Sucesso. In: FONSECA, D.P.R. e Siqueira, Josafá Carlos de (Orgs.). Meio Ambiente, cultura e desenvolvimento sustentável: somando esforços, aceitando desafios. Rio de Janeiro: Sette Letras, Historia y Vida, 2002, p. 169-184.
GUIMARÃES, Reinaldo da Silva. Afrocidadanização: ações afirmativas e trajetórias de vida no Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Selo Negro, 2013. 208 p.
HALL, Stuart. Quem precisa de identidade? In: Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Tomaz Tadeu da Silva (org.). Stuart Hall, Kathryn Woodward. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004, p.103 – 133.
NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. [Segunda edição in: O Brasil na mira do pan-africanismo. Salvador: Ceao/Edufba, 2002.].
NASCIMENTO, Elisa Larkin. Sortilégio da cor: identidade, raça e gênero no Brasil. São Paulo: Summus, 2003.

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