Por: Reinaldo Guimarães* e Luciene Gustavo Silva**
“não basta interpretar o mundo
É necessário transformá-lo”.
(Karl Marx)
Pensar em ações antirracistas tem sido um grande desafio na perspectiva do Serviço Social, talvez seja por estarmos envoltos na cortina velada do mito da democracia racial, entretanto, sabe-se que o racismo se configura como estrutural e estruturante, que sempre permeou pela sociedade brasileira e que atualmente tem-se aflorado nas manifestações racistas que incitam ao preconceito e a discriminação racial.
Mas, o que seria o preconceito e a discriminação racial?
Segundo o CFESS (2016, p. 12), o preconceito racial “pode estar subjacente a várias atitudes e comportamentos e presentes em discursos, símbolos e expressões, sem, contudo, ser percebido de forma explicita. Configura-se, muitas vezes, como espécie de ‘mimetismo’ no campo das relações pessoais […]”.
O que seria um pré-julgamento mediante as opiniões concebidas de forma negativa e/ou violenta e sem fundamentações referentes aos povos ou indivíduos.
Para compreender a discriminação racial recorre-se ao Estatuto da Igualdade Racial que a define assim:
Discriminação racial ou étnico-racial: toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em igualdade de condições, de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública ou privada (BRASIL, 2010).
A materialização desta ideologia de poder promove e reforça a desigualdade socioeconômica que segrega, isola e restringe a população negra em grande maioria em territórios que são vulnerabilizados, estigmatizados e visto como marginalizados.
O racismo viola os direitos humanos, promovendo:
• Genocídio – a “Recusa do direito da existência a grupos humanos inteiros, pela exterminação de seus indivíduos, desintegração de suas instituições políticas, sociais, culturais, linguísticas e de seus sentimentos nacionais e religiosos” (Ministério da Educação e Cultura, 1963, p. 580 apud NASCIMENTO, 2017).
• Necropolítica – “subjugam a vida ao poder de morte […] objetivo de provocar a destruição máxima de pessoas e criar ‘mundo de morte’ […]”. (MBEMBE, 2019).
• Epistemicídio – “pela negação aos negros da condição de sujeitos de conhecimento, por meio da desvalorização, negação ou ocultamento das contribuições do Continente Africano e da diáspora africana ao patrimônio cultural da humanidade; pela imposição do embranquecimento cultural e pela produção do fracasso e evasão escolar” (CARNEIRO, 2015).
O Racismo é um crime previsto na legislação federal conhecida como Lei Caó, nº 7.716/89 – “serão punidos, na forma desta Lei, os crimes relutantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou precedência nacional” (BRASIL, 1989).
Segundo Clóvis Moura (1994), “o racismo é uma arma ideológica de dominação”, sendo indissociável da relação de poder que explora e subalterniza os que não considerados iguais pelo colonizador.
Para Mbembe (2014, p. 21) a raça negra seria considerada como um:
Produto de um maquinário social e técnico indissociável do capitalismo, de sua emergência e globalização, esse termo foi inventado para significar a exclusão, embrutecimento e degradação, ou seja um limite sempre conjurado, humilhado e profundamente desonrado, o negro é, na ordem da modernidade, o único de todos os humanos cuja carne foi transformada em coisa e o espírito em mercadoria – a cripta viva do capital.
Essa questão social nos convoca a refletir em formas de almejar o protagonismo social e romper com a estrutura racista que devasta e domina a população negra em diversos aspectos constituintes da sua identidade racial. Além do fato da intolerância religiosa e dos discursos benevolentes em ações direcionados para “salvar” os indivíduos de si mesmos.
Por uma práxis antirracista!
A partir desse entendimento, considera-se a possibilidade do Serviço Social intervir pela defesa da igualdade sócio-racial, frente a esta questão social, que é considerada como um tema transversal, e contribuir para uma intervenção antirracista, a partir da concepção e da certeza de que o racismo pode ser notado em suas diversas facetas, sejam por meio estrutural, institucional, individual, ambiental, religioso, cultural, entre outras formas.
Na perspectiva do Serviço Social, em consonância com as diretrizes do Código de Ética e o seu Projeto ético-político seria possível pensar em intervenções no âmbito das políticas públicas que visam à proteção social (étnico-racial) no combate ao racismo.
Cabe ressaltar que o Brasil é um país signatário no tratado internacional da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e é um Estado Democrático de Direito, instituído na Constituição Federal de 1988, e conforme o artigo 5º, “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza […]”. Cabe ressaltar que neste mesmo artigo no inciso VI – assegura o “livre exercício dos cultos religiosos e garantias, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias” (BRASIL, 2015).
Veja também: Afrocidadanização: processo por natureza, devir em concepção
Veja também: Mudança de imagem: a valorização da identidade da pessoa negra como Afrocidadanização
Desta forma, o (a) Assistente Social oportunizaria a mobilização e a organização da população negra, potencializaria e desenvolveria de forma coletiva os elementos culturais e, assim, a cultura afro-brasileira viabilizaria a descolonizar a população negra dessa ideologia de poder que está arraigada de forma estrutural e estruturante.
Um novo olhar…
Uma das possibilidades para combater o racismo seria o (a) Assistente Social através de um olhar antirracista que possibilita ver para além do véu que encobre o mito da democracia racial, por meio de um olhar crítico e propositivo recorrer à cultura afro-brasileira como uma alternativa, a partir da instrumentalidade na práxis do Serviço Social com o objetivo de viabilizar a cidadania plena da população negra que padece das desigualdades sociorraciais proveniente do sistema capitalista, como meio de fomentar à Afrocidadanização.
Ao interpretar às mazelas sociorraciais, que se apresentam ancoradas no racismo, outra possibilidade seria fomentar a cultura afro-brasileira a partir do parâmetro da Constituição Federal de 1988, tendo como base:
• o artigo 215 – “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e difusão das manifestações culturais” (BRASIL, 2015, p. 209).
• o artigo 216 – “Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira” (BRASIL, 2015, p. 210).
Nesse contexto, o termo cultura não está vinculado de forma esvaziada ao folclore brasileiro, mas sim, Cultura como “um conjunto de complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, moral, o direito, os costumes e as outras capacidades ou hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro da sociedade” (Taylor, 1871 apud CUCHE, 2002, p. 35).
Todavia, Munanga e Gomes (2016, p. 139) relatam que:
No decorrer do processo histórico brasileiro, os homens e mulheres negras sempre lutaram e resistiram bravamente a toda forma de opressão e discriminação. […] Por meio da resistência política, da religião, da arte, da música, da dança e da sensibilidade para com a ecologia o negro produz, participa e vivencia a cultura afro-brasileira.
No processo interventivo, o recurso a Cultura afro-brasileira estaria centrado na esfera do patrimônio cultural imaterial a partir do conceito estabelecido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN):
Entende-se por patrimônio cultural imaterial representações da cultura brasileira como: as práticas, as forma de ver e pensar o mundo, as cerimônias (festejos e rituais religiosos), as danças, as músicas, as lendas e contos, a história, as brincadeiras e modos de fazer (comidas, artesanato, etc.), junto com os instrumentos, objetos e lugares que lhes são associados – cuja tradição é transmitida de geração em geração pelas comunidades brasileiras (IPHAN, 2008).
Desta forma, a cultura afro-brasileira compreendida no âmbito das ações afirmativas – que são políticas públicas “criadas para corrigir, reparar e combater os efeitos acumulados das discriminações ocorridas no passado” (AMARO, 2019, p. 56), ou seja, não sendo, portanto, assistencialismo.
Ambas políticas públicas são elementos que possibilitariam a mobilização dos diversos indivíduos em sua dimensão: social, política, econômica e cultural, com possibilidades de transformar a realidade social da população negra, e assim, democratizar e descolonizar a cultura, e consequentemente preservar a identidade racial.
Para esta efetivação poderia se recorrer ao âmbito da Política Nacional de Cultura Viva (PNCV) como eixo transversal do desenvolvimento social e econômico sustentável conforme a Lei nº 13.018//14, artigo 3º –
A Política Nacional de Cultura Viva tem como beneficiária a sociedade e prioritariamente os povos, grupos, comunidades e populações em situação de vulnerabilidade social e com reduzido acesso aos meios de produção, registro, fruição e difusão cultural, que requeiram maior reconhecimento de seus direitos humanos, sociais e culturais ou no caso em que estiver caracterizada ameaça a sua identidade cultural (BRASIL, 2014).
Nesse processo, as intervenções antirracistas estariam direcionadas e associadas ao reconhecimento e a valorização, no que tange principalmente ao respeito às crenças, as práticas religiosas, aos costumes e aos habitus culturais para possível rompimento das correntes materiais e imateriais que permeiam na sociedade brasileira através da ideologia colonizadora, e promover a concretização da Afrocidadanização em defesa dos direitos democráticos e da salvaguarda da população negra.
*Reinaldo da Silva Guimarães – Doutor em Serviço Social (PUC-Rio); Mestre em Sociologia (IUPERJ); professor adjunto no UNIAN; avaliador do INEP/MEC; autor dos livros: AFROCIDADANIZAÇÃO: ações afirmativa e trajetórias e vida no Rio de Janeiro e PORQUE PARA O NEGRO SIM! As Cotas Raciais como instrumento para a Afrocidadanização.
CV: http://lattes.cnpq.br/0847213852963062
** Luciene Gustavo Silva – Pós-graduanda em Serviço Social – PUC-Rio; Graduada em Serviço Social pelo Centro Universitário Anhanguera de Niterói (UNIAN) – E-mail: lucienegustavo.seso2015@gmail.com
Autora do livro: CAPOEIRA: instrumento alternativo para fomentar a Afrocidadanização na perspectiva do Serviço Social. Novas Edições Acadêmicas, 2019, 62 p. CV: http://lattes.cnpq.br/3074567202026864
Referência bibliográfica
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Referência digital
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Doutor em Serviço Social (PUC-Rio); Mestre em Sociologia (IUPERJ); Professor Adjunto no UNIAN; Avaliador do INEP/MEC; autor dos livros: Afrocidadanização: ações afirmativa e Trajetórias e Vida no Rio de Janeiro; Porque para Negro Sim! As Cotas Raciais como instrumento para a Afrocidadanização.