Uma condição necessária para se compreender as relações de poder em nossa sociedade, e como essas relações operam distinções, criando hierarquias entre os diversos grupos sociais, estabelecendo a superioridade de uns e a subalternidade de outros, é sem dúvida, o entendimento sobre a influência e a importância do conceito de Raça e seu produto, o Racismo.
A perspectiva através da qual o conceito de raça pode ser entendido é aquela que o aponta como um constructo social, que engloba em sua constituição uma dimensão que é também biológica, não no sentido de que seja uma realidade que explique a diversidade humana e a dívida em raças estanques, mas no sentido de que produz a legitimidade dos efeitos da classificação racial universal como elemento de dominação social, hierarquia e subalternidade entre as diferentes populações.
Desta forma, apresentaremos algumas das significativas definições sobre os conceitos raça e racismo, a partir da perspectiva de Kabengele Munanga, Anibal Quijano e Elisa Larkin Nascimento.
Gênese dos conceitos raça e racismo por Kabengele Munanga
Uma importante discussão sobre a gênese dos conceitos raça e racismo nos é apresentada por Kabengele Munanga (2004), ao apresentar em termos analíticos a historicidade do conceito raça e do seu corolário: o racismo.
Este autor escreve que em termos etimológicos a palavra raça vem do latim “ratio”, passando pelo italiano “razza”, e significa sorte, categoria ou espécie. Em sua longa história, o conceito raça foi utilizado pelas Ciências Naturais para classificar animais e vegetais.
Posteriormente, assumiu uma dimensão temporal e espacial, no latim medieval “passou a designar descendência, linhagem, ou seja, um grupo de pessoas que têm um ancestral comum e que possuem algumas características físicas em comum” (MUNANGA, 2004b, p.17).
A transformação do conceito de raça, e da consequente diferenciação humana ao longo da história, foi o estabelecimento no século XVIII da cor da pele como critério objetivo e fundamental de diferenciação entre as raças.
Assim, em uma classificação que persiste até hoje no imaginário coletivo e na terminologia científica, a espécie humana foi dividida em três raças estanques: as raças branca, negra e amarela.
Posteriormente na classificação racial em grupos estanques, acrescentaram-se ao critério da cor outros critérios morfológicos como a forma do nariz, dos lábios, do queixo, do crânio, o ângulo facial, etc. Com o progresso da genética humana, foram introduzidos critérios químicos, baseados no sangue, para consagrar definitivamente a divisão da humanidade em raças estanques.
Posto que o conceito raça, como empregado hoje, nada tem de biológico, este se apresenta como um conceito carregado de ideologia e, como todas as ideologias, escondem uma dimensão não-reclamada: as relações de poder e a discriminação.
Desta maneira, no imaginário e na representação coletiva das diversas populações contemporâneas permanecem raças fictícias ou construídas a partir de diferenças fenotípicas como a cor da pele e outros critérios morfológicos. É a partir dessas raças fictícias ou raças sociais que se reproduzem e se mantêm os racismos populares (MUNANGA, 2004b, p. 22).
Para Munanga, o racismo surge como uma crença na existência de raças naturalmente hierarquizadas pela relação intrínseca entre o físico e o moral, o físico e o intelecto, o físico e o cultural.
É justamente o estabelecimento da relação intrínseca entre caracteres biológicos e qualidades morais, psicológicas, intelectuais e culturais que permite a hierarquização das raças em superiores e inferiores.
Desse modo, o racismo é uma tendência que consiste em considerar as características intelectuais e morais de um dado grupo humano como decorrentes das suas características físicas ou biológicas.
De fato, atualmente, o racismo não precisa mais do conceito de raça no sentido biológico para decretar a existência das diferenças insuperáveis entre grupos estereotipados.
Por este aspecto, “o que mudou, na realidade, são os termos ou conceitos, mas o esquema ideológico que subentende a dominação e a exclusão ficou intato” (MUNANGA, 2004b, p. 29).
Raça como Colonialidade do Poder por Anibal Quijano
Para Aníbal Quijano (2001), raça é uma categoria metal da modernidade que surge no contexto da constituição da América e do capitalismo colonial/moderno e eurocentrado. Este capitalismo estabeleceu um novo padrão de poder mundial, configurado a partir de dois eixos fundamentais.
Por um lado, a “colonialidade do poder”, isto é: o estabelecimento de um padrão de classificação social da população mundial submetido à ideia de raça, uma construção mental que expressa esta dominação colonial.
Por outro, a articulação de todas as formas históricas de controle do trabalho, de seus recursos e de seus produtos, em torno do capital e do mercado mundial.
Quijano ressalta que o termo “colonialidade” não se confunde com “colonialismo”, mas estão relacionados, posto que a “colonialidade do poder” não teria sido historicamente possível sem o “colonialismo” imposto ao mundo a partir do século XVI (QUIJANO, 2002, p. 23)*.
Este autor, fundamenta na “colonialidade do poder” uma dimensão econômica da classificação racial, importante para se entender como esta ideia classificatória e hierarquizada se propaga, mas também, para entender por que o seu produto —o “racismo”— persiste como elemento definidor de hierarquias e subalternidades nas sociedades pós-coloniais, dificultando tanto o processo de afrocidadanização quanto o processo de democratização.
Para ele, a ideia de raça, em seu sentido moderno, não tem história conhecida antes da conquista da América. A formação de relações sociais fundadas nesta ideia produziu na América identidades sociais historicamente novas: índios, negros e mestiços, redefinindo outras, espanhol e português, mais tarde europeus.
Nesse processo, à medida que as relações sociais se configuravam em relações de dominação, tais identidades foram associadas a hierarquias, lugares correspondentes como constitutivas dessas identidades e, em consequência, ao padrão de dominação colonial que se estabelecia.
Outro aspecto importante relacionado às novas identidades históricas é o fato de que estas foram associadas à nova estrutura global de controle do trabalho.
Assim, ambos os elementos, raça e divisão do trabalho, ficaram estruturalmente associados e reforçando-se mutuamente, apesar de nenhum dos dois serem necessariamente dependente um do outro para existir e se relacionar.
Deste modo, a distribuição racista de novas identidades sociais foi combinada com uma distribuição racista do trabalho e das formas de exploração do capitalismo colonial. Isto se expressou, sobretudo, em uma quase exclusiva associação da “brancura social” com o salário e, por definição, com os postos de mando da administração colonial.
Afirma Quijano, que com o estabelecimento da “colonialidade do poder”, a população dominada não só foi submetida às relações de trabalho, mas também foi submetida à hegemonia eurocêntrica na maneira de adquirir conhecimento, promovendo uma subordinação que não é somente étnica e racial, mas colonial, epistêmico e acadêmico.
Desse modo, a descolonização do poder, qualquer que seja o âmbito concreto de referência, tem como ponto de partida a descolonização de toda a perspectiva do conhecimento.
Raça e sortilégio da cor por Elisa Nascimento
Para Elisa Larkin Nascimento (2003), um dos processos através do qual o racismo se manifesta está no processo que transforma a ideia original de raça, a partir do esvaziamento do conteúdo racial das relações discriminatórias, para uma perspectiva de neutralidade baseada em uma hierarquia racial de escala gradativa de cor e prestígio, que classifica pela “marca” ou pelo fenótipo, de origem racial ou étnica, portanto, “não-racista”.
Porém, observa que esta distinção é fictícia, posto que não existe uma distinção real em relação ao preconceito de marca e o preconceito de origem porque “a marca é simplesmente o signo da origem; é através da marca que a origem é discriminada, sendo esta, e não o fenótipo em si, o alvo da discriminação” (NASCIMENTO, 2003, p. 46-47).
Ao processo utilizado para encobrir e evitar os efeitos perniciosos do racismo, baseado na ideia de raça, a autora denomina de “sortilégio da cor”: uma ideologia que opera nas relações raciais, tendo como principal função ocultar o supremacismo branco e o etnocentrismo ocidental. Desta forma, aparece o aspecto mais nocivo da “manifestação” do “racismo”, ocultado pelo “sortilégio da cor”: a transformação do negro brasileiro em “branco virtual”.
De fato, como define Nascimento, o processo de encobrimento do racismo operado pelo “sortilégio da cor”, constrói a figura do “branco virtual”, o mestiço desafricanizado, identificado com os valores da sociedade ocidental, negando seu próprio “racismo”, projetando-o em um “outro” racista que, não raro, vem a ser o próprio negro e os movimentos sociais organizados.
Assim, o “branco virtual” é o que assume e se engaja, mesmo de forma inconsciente, nos processos do racismo calcado no “sortilégio da cor”. “Trata-se da hegemonia de uma identidade étnica invisível, silenciosa, que reina implícita como universal e imune ao questionamento” (NASCIMENTO, 2003, p. 383-384).
Para a autora o “sortilégio da cor”, como instrumento de dominação e poder, forjou na sociedade brasileira uma identidade nacional calcada na rejeição do critério estabelecido pela ciência biológica, favorecendo a categoria cor e divorciando-a da origem racial.
Esta forma de racismo introjetou-se na consciência da nação, articulando-se ao discurso nacional e fundamentou um sistema social de profundas desigualdades raciais, em um suposto paraíso de harmonia racial (NASCIMENTO, 2003, p. 152).
Nesta perspectiva, reconhecer as sutilezas através das quais o racismo se manifesta no contexto sociocultural brasileiro, é significativamente importante, porque nos dá a noção de dominação, invisibilidade e silenciamento que caracteriza a questão racial, pois, mesmo com a tentativa de definir diferenças raciais em outros termos – cor e etnia, por exemplo –, a ideia básica fundada na diferença racial, que estabelece hierarquias entre os povos, permanece e se reforça com base em sua negatividade e em seu silenciamento.
Compreender a essência do racismo, como prática social e como um dos elementos estruturantes das relações de poder, imposta aos povos colonizados pelos colonizadores para garantir a sua dominação, através do qual vilipendiam, desqualificam, desigualam e violentam os indivíduos da população negra, é uma condição essencial do devir necessário para o seu enfrentamento e para a materialização da Afrocidadanização.
*Segundo Maldonado-Torres (2007, p. 131 apud Oliveira, 2018, p. 45-46), Colonialismo denota uma relação política e econômica na qual a soberania de um povo reside no poder de outro povo ou nação e que constitui tal nação num império. Diferente desta ideia, a Colonialidade se refere a um padrão de poder que emergiu como resultado do colonialismo moderno, porém, ao invés de estar limitado a uma relação formal de poder entre povos e nações, refere-se à forma como o trabalho, o conhecimento, a autoridade e as relações intersubjetivas se articulam entre si através do mercado capitalista mundial e da ideia de raça. Assim, ainda que o colonialismo tenha precedido a colonialidade, esta sobrevive após o fim do colonialismo. A colonialidade se mantém viva nos manuais de aprendizagem, nos critérios para os trabalhos acadêmicos, na cultura, no senso comum, na autoimagem dos povos, nas aspirações dos sujeitos e em tantos outros aspectos de nossa experiência moderna.
Referências Bibliográficas
GUIMARÃES, Reinaldo da Silva. Afrocidadanização: ações afirmativas e trajetórias de vida no Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Selo Negro, 2013. 208 p.
MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.
__. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia. In: Cadernos PENESB. Niterói; EdUFF, 2004b, p.17-34.
NASCIMENTO, Elisa Larkin. Sortilégio da cor: identidade, raça e gênero no Brasil. São Paulo: Summus, 2003.
OLIVEIRA, Luiz Fernandes de. Educação e militância decolonial. 1ª edição. – Rio de Janeiro: Editora Selo Novo, 2018.
QUIJANO, Anibal. Colonialidade, poder, globalização e democracia. Novos Rumos, ano 17, N.27, p. 1-25, 2002.
Doutor em Serviço Social (PUC-Rio); Mestre em Sociologia (IUPERJ); Professor Adjunto no UNIAN; Avaliador do INEP/MEC; autor dos livros: Afrocidadanização: ações afirmativa e Trajetórias e Vida no Rio de Janeiro; Porque para Negro Sim! As Cotas Raciais como instrumento para a Afrocidadanização.