Sobrecarga de trabalho da Assistente Social em tempos de pandemia

Como a pandemia ampliou a carga de trabalho para as assistentes sociais enquanto trabalhadoras inseridas no mercado de trabalho, mas também como responsáveis pelos cuidados domésticos.

Introdução

A conjuntura atual da sociedade brasileira com o advento da pandemia do Covid-19, exige uma reflexão sobre divisão sexual do trabalho e suas consequências, tanto na esfera pública quanto na esfera privada, relativo ao papel da mulher e do homem nessa divisão.

Em função disso, nossa discussão estará focada no papel das* assistentes sociais nessa realidade, como cuidadoras em ambos espaços e como esta dupla e muitas vezes triplas tarefas a sobrecarregam, exigindo atenção dos órgãos públicos e privados.

Pensando na história da organização social e na divisão de papéis na sociedade, alguns autores analisam que há alguns séculos já existe a nítida divisão dos papeis a serem ocupados nos espaços públicos e privados.

Ainda no século XIX, “Os homens “pertenciam” à esfera pública, pois desempenhavam de forma predominante o papel de provedor da família, e as mulheres “pertenciam” à esfera privada, uma vez que o cuidado do lar funcionava como atividade de contrapartida dado o sustento financeiro do marido” (SOUSA e GUEDES, 2016, p. 123).

A inserção das mulheres no mundo do trabalho provoca alterações no âmbito público, com o destaque das mulheres em diversas esferas na cadeia produtiva/econômica, porém, essas mudanças não se refletiram no âmbito privado e pouco se teve de compartilhamento das responsabilidades domésticas e de cuidados.

Estudo do IPEA demonstra que no período de 2001 a 2015, a proporção de mulheres que realizam afazeres domésticos ficou acima de 91%. Já entre os homens, ela variou de 45% em 2001 para 55% em 2015. Assim, sabemos que apesar de existirem homens que contribuem para o cuidado no lar, essa tarefa é desempenhada, primordialmente, pelas mulheres.

Paralelo a isso, o ato do “cuidar” sempre foi destinado às mulheres na sociedade. Apesar de ser extremamente importante, o cuidar na sociedade sempre foi relegado ou tornado invisível socialmente.

O adensamento das mulheres nas fronteiras públicas não é acompanhado de uma revisão dos limites das responsabilidades privadas femininas. Isso significa que a esfera de reprodução da família como educação e demais cuidados continua, em grande medida, a cargo das mulheres […] As atribuições socialmente definidas para homens e mulheres, no fim das contas, permanecem nas concepções culturais, uma vez que delegam ainda às mulheres as responsabilidades da reprodução social. (SOUSA e GUEDES, 2016, p. 123).

Apesar de muita luta dos movimentos sociais, principalmente, o feminista, esse comportamento continua sendo reproduzido ainda no século XXI e a pandemia, com toda sua nova “roupagem de requisições”, trouxe uma sobrecarga para todas as mulheres, que são trabalhadoras na sua essência, mas que nem sempre “produzem riqueza” (trabalho doméstico), mas que são essenciais na base de sustentação e organização das famílias e nas relações sociais.

Ainda segundo os autores

“O ingresso das mulheres no mundo econômico não equilibra as funções atribuídas aos sexos, ao contrário, reforça as desvantagens vividas pelas mulheres que atualmente compartilham com os homens, de forma equânime ou não, a provisão financeira da família juntamente com a responsabilidade da esfera reprodutiva.
A saída do lar e as conquistas cada vez mais visíveis no âmbito público representaram uma revolução incompleta, uma vez que as mulheres ainda assumem praticamente sozinhas as atividades do espaço privado, o que perpetua uma desigual e desfavorável divisão sexual do trabalho para elas” (SOUSA e GUEDES, 2016, p.125).

Embora tenha tido o processo de entrada e de consolidação da mulher no mercado de trabalho, esse processo não se refletiu na valorização das suas funções e nas suas remunerações, uma vez que determinadas atividades são atribuídas ao feminino e consequentemente, tem menores salários e menos valorizadas.

Segundo o IPEA ” A questão de gênero é determinante no mercado de trabalho. De uma forma geral, as mulheres brasileiras ganham, em média, 76% da remuneração masculina, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD). Mulheres negras recebem ainda menos: 43% dos salários dos homens brancos”.

Essa sobrecarga também se faz presente para as profissionais do Serviço Social, uma vez que é uma profissão historicamente feminina e, desde o seu surgimento no Brasil, no início do século XX, sempre foi composto, em sua maioria, por mulheres.

Uma possibilidade deste perfil profissional pode estar na sua gênese (as damas de caridade) e na própria forma com que as profissões são vinculadas a determinados papeis na sociedade, através, principalmente de estereótipos já enraizadas na sociedade.

Isso se materializa quando analisamos as atividades profissionais e sua valorização e podemos perceber que existe uma associação entre o sexo e o que é considerado como masculinidade e feminilidade.

A virilidade/masculinidade “é associada ao trabalho pesado, penoso, sujo, insalubre, algumas vezes perigoso, já a feminilidade é associada ao trabalho leve, fácil, limpo, que exige paciência e minúcia (Hirata, 1995). A masculinidade foi associada ao homo economicus, aquele que age com racionalidade, e a feminilidade, associada ao sentimentalismo, muitas vezes irracional. Nessa lógica, ficaram reservadas aos homens as tarefas que geram mais retornos econômicos, e às mulheres, as tarefas que embora possam não gerar bons retornos econômicos têm ligação com o lado amoroso, cuidadoso, altruísta “feminino””. (SOUSA e GUEDES, 2016, p. 126).

O Serviço Social, somado a outras profissões, acaba por ser considerado profissão feminina por conta da imagem social que a apresenta como uma profissão destinada à ajuda e apoio, destinado ao público vulnerável ou em situação de risco, ou seja, o que, no senso comum, é considerado como ajuda/cuidado ao próximo.

E em decorrência deste imaginário social relacionado à ajuda, a profissão acaba sendo relacionada ao assistencialismo, ou seja, a forma de oferta de um serviço por meio de uma doação, favor, boa vontade ou interesse de alguém e não como um direito (CFESS).

Pandemia e Serviço Social

Pensando nessa estrutura da divisão no mundo do trabalho encontra-se o/a Assistente Social.

Profissional de nível superior, com a imagem socialmente construída para a ajuda e o cuidado na sociedade, que precisa, a partir do avanço da pandemia, reinventar seu cotidiano, estruturar seus mecanismos pessoais de proteção ao coronavírus (da mesma forma como o restante da população), mas precisa também, como a maioria das mulheres do país, organizar o cuidado em tempo integral da sua família (até dos que não residem na mesma casa).

A partir das medidas de isolamento social (impostas pela propagação do covid-19) a rotina pessoal e profissional teve reflexos e sobrecarga de trabalho de toda ordem, tanto no âmbito micro quanto em nível macro, podendo ser exemplificado em:

  • presença full time das crianças/adolescentes em casa em virtude da interrupção das aulas escolares;
  • isolamento dos idosos em casa;
  • permanência maior do elemento masculino em casa, seja pelo homeoffice, pelo desemprego ou pela precarização do vínculo trabalhista;
  • o trabalho da assistente social, que em muitos casos, se transformou em homeoffice/teleatendimento, o que o/a obriga em tempo recorde desenvolver essa nova prática (mesmo sem respaldo profissional ou institucional) ou continuar no trabalho presencial, por vezes em regime de escala.
Foto: Bigstock/Gazeta do Povo

Essa nova rotina provoca uma situação de stress, pois apesar da utilização de equipamentos individuais de proteção e de desinfecção, existe uma grande preocupação em “carregar” o vírus para dentro do lar, e assim, contaminar quem está em isolamento social.

Analisando os impactos desta nova realidade para as trabalhadoras, pode-se afirmar que

“o necessário fechamento de escolas e creches é um dos principais aspectos desta crise. Com isso, temos mulheres que, apesar de não desobrigadas de suas obrigações laborais formais, encontram-se submetidas à uma dinâmica de aprofundamento de vulnerabilidades sociais, visto que a rede de proteção social formal (escolas, creches, cuidadores de idosos, etc.) e informal (parentes, família extensa, vizinhos, etc.) encontra-se suspensa e/ou repleta de limitações.
Portanto, o conflito vida/trabalho tende a agravar-se durante a pandemia, gerando ainda maior sobrecarga prática, objetiva e psíquica às famílias e, mais especificamente às mulheres trabalhadoras, aumentando a sensação de sobrecarga, solidão e exaustão”. As trabalhadoras se dividem em uma dupla jornada de trabalho, realizando o trabalho do cuidado doméstico, informal, ‘invisível’ e naturalizado mediante a divisão sexual do trabalho, ao tempo em que devem ser capazes de atender às exigências do seu labor formal” (TRT 1ª Região)

Apesar de todos estarem em situação de risco à contaminação do coronavirus, o cuidado com a família, e todos os seus membros, mesmo os que não moram na residência (aqui considerado como os idosos ou pessoas com comorbidades que não podem sair de casa, fazendo o isolamento social e que necessitam que terceiros realizem atividades do cotidiano, como ida ao mercado, farmácia , banco ou outros estabelecimentos cotidianos) fica a cargo da figura feminina, o que a sobrecarrega cada vez mais.

Essa sobrecarga também é vislumbrada pela ONU quando, António Guterres, secretário-geral, também avalia a proporção do impacto da pandemia para as mulheres, afirmando que elas “carregam desproporcionalmente o fardo em casa e na economia em geral”.

Ainda segundo o Escritório da ONU Mulheres, analisando os impactos e implicações do Covid-19, afirmam que são diferentes para mulheres e homens, visto que “as mulheres continuam sendo as mais afetadas pelo trabalho não-remunerado, principalmente em tempos de crise. Devido à saturação dos sistemas de saúde e ao fechamento das escolas, as tarefas de cuidado recaem principalmente sobre as mulheres, que, em geral, têm a responsabilidade de cuidar de familiares doentes, pessoas idosas e crianças”.

Assim, essa profissional acaba tendo as jornadas duplas ou triplas de trabalho, somados a execução de atividades de cuidado e proteção no lar e/ou fora dele (no desenvolvimento da sua prática profissional na instituição empregadora, mas também, realizando atividades necessárias como medida de proteção aos membros da família).

Entendendo não só os impactos negativos dessa conjuntura, mas também, o peso que o ambiente institucional tem nas condições da vida das profissionais, existe uma necessidade da articulação do poder público, instituições e sociedade em geral

“na construção de um trabalho seguro e decente para as mulheres trabalhadoras significa, sob uma ótica de interseccionalidade (gênero, classe e raça), […] para, além da preservação da saúde física e psíquica das mulheres, dar visibilidade à prevalência e ao recrudescimento das desigualdades e dos retrocessos de direitos das mulheres no contexto da pandemia.” (TRT 1ª Região)

Em consequência dessa estrutura econômica e social baseada nos espaços públicos/privados a serem ocupados pela figura masculina e feminina, acreditamos que a Assistente Social acaba sendo um dos profissionais inscritos no mercado formal de trabalho mais sobrecarregadas, em virtude das características profissionais e sociais elencadas acima, o que faz com que a carga emocional e psicológica da profissional fique abalada.

Toda essa situação de tensão e de alteração na rotina profissional e pessoal somado aos cuidados com toda a família e os cuidados na proteção contra o coronavírus, a Assistente Social vive um período extenuante e exaustivo, precisando ter atenção, por parte do poder público e das instituições empregadoras por melhores condições de trabalho, em virtude dessa sobrecarga de trabalho.

Somado a isso, existe a necessidade de uma mudança de mentalidade e comportamento do indivíduo masculino, que apesar de estar um período maior em casa, ainda se considera o sujeito do espaço público e que acaba por não ter muito comprometimento com o cuidado e com o espaço privado (a residência e todos os cuidados que fazem parte deste universo) sobrecarregando, desta forma, a mulher/profissional/mãe/dona de casa.

*Sabemos que a profissão de Serviço Social foi, em sua gênese, uma profissão instituída e constituída por mulheres, mas que, na atualidade, também engloba homens, porém, em virtude da sua ampla maioria ser composta por mulheres, (de acordo com a pesquisa realizada pelo CFESS (2005), a profissão é composta majoritariamente por mulheres – pouco mais de 90%), nesse artigo utilizaremos somente a expressão “a assistente social”.

Referências
IPEA. Mulheres ganham 76% da remuneração dos homens. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=34627
IPEA. Mulheres dedicam muito mais tempo ao trabalho doméstico, mas a diferença cai. Disponível em https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=34450. Acessado em 03/08/2020.
SOUSA, L. P. de e GUEDES, D. R. A desigual divisão sexual do trabalho: um olhar sobre a última década. Estudos Avançados, vol. 30, nº 87, SP, 2016. Disponível em https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142016000200123&lng=en&nrm=iso . Acessado 26/07/2020.
ONU. https://nacoesunidas.org/chefe-da-onu-pede-solidariedade-esperanca-e-resposta-global-coordenada-para-combater-pandemia/
ONU Mulheres. Gênero e Covid-19 na América Latina e no Caribe: dimensões de gênero na resposta. http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2020/03/ONU-MULHERES-COVID19_LAC.pdf
TRT 1ª Região. A desigualdade de gênero durante a pandemia de covid-19. Disponível em: https://www.trt1.jus.br/ultimas-noticias/-/asset_publisher/IpQvDk7pXBme/content/desigualdade-de-genero-no-mercado-de-trabalho-durante-a-pandemia-de-coronavirus/21078 . Acessado em 28/07/2020.

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