Trainee para negros: enfrentamento ao racismo estrutural como fomento da Afrocidadanização

Recentemente o racismo estrutural da sociedade brasileira veio mais uma vez à tona com a discussão sobre o lugar e a posição que uma pessoa negra pode ou não ocupar no espaço no mercado de trabalho.

Ao longo da história da sociedade brasileira, em sua estrutura de formação social, cultural e política, tem sido imposta aos indivíduos da população negra uma posição subalternizada na hierarquia e no status social.

Essa posição subalterna tem na esfera do trabalho a sua expressão mais nítida e definida, sobre as quais persistem situações de discriminação e racismo, relativas aos valores negativos imputados a imagem social do negro a partir de: marca da cor, habilidade pessoal e capacitação profissional.

Foto: Reprodução da internet

Esta situação observada neste espaço social, no qual os indivíduos não só garantem a sua sobrevivência, mas também se reconhecem e são reconhecidos, fortalecem sua autoestima e conquistam ou não a cidadania plena, é um indício indiscutível e visível de expressões da desigualdade social e do racismo estrutural brasileiro.

A base da argumentação encontrada nas mais diversas análises sobre as posições subalternas ocupadas pelos indivíduos provenientes da população negra no mercado de trabalho, frequentemente atribui a sua baixa representatividade em posições prestigiosas na hierarquia da esfera do trabalho à falta de qualificação profissional desta população, devido principalmente à sua insuficiência de capital cultural.

O Brasil durante centenas de anos utilizou-se largamente da mão de obra escrava do negro africano que, como já sabemos, era tratado de forma subumana e obrigado a práticas de trabalho variantes, desde as tarefas no engenho a favores e violências sexuais.

Não foi do interesse da elite do poder da sociedade brasileira oferecer ou dar condições para a emancipação dos negros, posto que havia a preocupação de que a população negra, maioria no território nacional, também se constituísse enquanto maioria política, ameaçando a hegemonia branca.

O negro, tão pertencente ao território nacional, era tratado como um elemento não pertencente ao mesmo. “Embora nunca houvesse existido um Brasil sem negros, estes foram transformados em estrangeiros por uma definição eurocentrista da identidade nacional” (NASCIMENTO, 2003: 127).

Diante das poucas saídas que possuíam para sobrevivência sob um mercado industrial que rejeitou a sua mão de obra, tiveram como opção as ocupações com poucas condições e baixa remuneração, como babás, cozinheiras, empregadas domésticas ou como vendedores (as) pelas ruas das cidades.

Por tanto tempo explorado e humilhado foi descartado pela vinda de imigrantes europeus sob a falácia de que eles possuíam maior capacitação para o trabalho.

Para isso não houve economia de esforços e muito menos de recursos financeiros. Esta Primeira Ação Afirmativa que beneficiou os imigrantes significou, de fato, o fortalecimento da condição de inferioridade dos indivíduos da população negra.

A partir desse processo, pode-se dizer que as práticas sociais racistas em nossa sociedade estão estruturalmente contidas nas dimensões socializadoras onde são institucionalizadas, transmitidas e ensinadas ao longo de nossa história, e através das quais se tem atribuído lugares e status desqualificadores e de inferioridade aos negros em nossa sociedade.

Como elementos estruturantes do racismo, as formas pelas quais historicamente se tem qualificado as pessoas negras, como a utilização de estereótipos pejorativos, imagens subalternizadas nos livros didáticos, com a sub ou ausência de representatividade nos espaços e em funções mais prestigiosas da nossa sociedade entre outros, se constituiu e têm se constituído em instrumentos fundamentais para a formação dos costumes e do habitus cultural nas relações raciais da nossa sociedade.

E esse habitus cultural, que naturaliza as desigualdades raciais, têm se reproduzido, através de uma dinâmica ideológica institucionalizada, por intermédio de vários processos socializadores nas diversas instituições sociais, como escolas, famílias, igrejas, entre outras, inculcando, internalizando e socializando os sujeitos, a partir de especificas concepções, valores, práticas, comportamentos, pensamentos e sentimentos, por intermédio das quais se tem perpetuado as discriminações e os preconceitos.


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Nesse panorama a questão que se coloca é a seguinte: Por que o negro não pode, em um estado democrático de direitos, baseado na dignidade da pessoa humana, ser escolhido como futuro diretor de uma rede loja de venda de produtos no varejo?


Recentemente o racismo estrutural da sociedade brasileira veio mais uma vez explicitamente à baila com a discussão sobre a possibilidade ou não de um contingente formado somente por negros pudesse participar de um processo de escolha para um futuro cargo de diretor de uma loja de venda a varejos. Nessa discussão, se coloca em pauta novamente o lugar e a posição que um negro pode ou não ocupar no espaço no mercado de trabalho.

Tal discussão não tem a ver com a capacidade ou merecimento, mas sim com a possibilidade de mudança no status quo das posições ocupadas pelos negros no mercado de trabalho, que historicamente tem sido uma posição inferior e subalternizada. Mais uma vez manifesta-se o habitus cultural de que o negro só deve ocupar o lugar e um espaço de subalternidade, são manifestações que insistem em não perceber que o negro pode e deve assumir também lugares e posições superiores na hierarquia posicional no mercado de trabalho.

Como no caso das primeiras iniciativas e implementação das políticas de ação afirmativa, através das cotas, tivemos manifestações contra a iniciativa de uma rede de lojas com a alegação de que o programa por ela implementado direcionado somente para negros é um programa inconstitucional, injusto e se caracteriza como uma espécie de racismo reverso.

Tivemos também várias manifestações a favor da iniciativa, no âmbito da justiça e nas diversas discussões políticas, que apontaram que o programa é um programa que se coloca em oposição as medidas segregadoras de gênero e de raça.

Mas o que todas as discussões trazem, de fato, é mais uma vez o entendimento de que as manifestações racistas na sociedade brasileira tentam sempre impedir a ascensão social dos indivíduos da população negra e não querem a mudança de status quo do negro, ou seja, sempre reafirmam que o lugar do negro no espaço do mercado de trabalho não deve ser o de superior na hierarquia posicional.

Nesta perspectiva em que se insere o programa de trainee da rede de lojas, programa este, respaldado no Estatuto da Igualdade Racial, Lei 12.288/2010, como uma especifica ação afirmativa, através do qual se pode apontar que a situação de subalternidade dos trabalhadores da população negra pode começar a se transformar substancialmente, demonstrando como condição de futuro a possibilidade do aumento da presença destes indivíduos em posições hierárquicas superiores e de destaque no mercado de trabalho.

No caminho constitutivo de um devir necessário à Afrocidadanização, uma dimensão fundamental tem sido o empoderamento do indivíduo da população negra, através do fortalecimento e da positivação da imagem social do indivíduo da população negra.

Pode-se perceber que dentre as principais ações práticas em curso em nossa sociedade para esse fortalecimento, destaca-se o processo de ressignificação das formas pelas quais historicamente se identificam, se reconhecem e se valorizam os indivíduos da população negra, ou seja, o processo de transformação nas formas pelas quais as pessoas negras são sistematicamente estigmatizadas, desqualificadas e representadas na sociedade, na memória e no imaginário social.

O que iniciativas como a da rede de lojas nos coloca é a possibilidade factível da transformação da realidade racial de nossa sociedade.

Portanto, à medida em que se processe a transformação do habitus cultural da sociedade brasileira, principalmente em suas estruturas socializadoras, a partir de novas formas de educar, inculcar, internalizar e de socializar os sujeitos, como por exemplo, através do reconhecimento e da valorização da identidade racial negra como positiva, as sutilezas da discriminação racial à brasileira, poderão ser solapadas em sua virulência e, dessa forma, poderemos vislumbrar outra realidade social, menos desigual e democrática racialmente.

Mas é importante dizer que este impacto é também construtor de novas subjetividades, porque nos oferece a possibilidade de uma transformação pessoal e acrescenta novos conhecimentos às nossas velhas concepções de mundo, ao compreender diferenças, dando-lhe um sentido positivo.

A partir desta experiência, já não se viverá mais a ilusão da inserção em determinado contexto sem que realmente se esteja nele inserido, mas se viverá uma realidade objetiva, passível de ser transformada, na qual a capacidade de se superar e melhorar a cada dia pauta a nossa luta a seguir e os novos sucessos a conquistar.

É certo que há muito ainda a se fazer, muita luta a enfrentar, muitas outras iniciativas a serem efetuadas na direção de uma verdadeira democracia racial, porém, o conjunto de vivências e percepções presenciados nesse caso refletem uma condição revolucionária, que apontam para uma condição de processo; de um devir; de futuro para transformar profundamente a história material, cultural e simbólica na vida dos indivíduos da população negra brasileira.

Como um processo inserido no âmbito das ações afirmativas, programas como os de trainee da rede de lojas direcionado só para negros, podem atuar como uma poderosa ferramenta para o fomento da Afrocidadanização.

Referências bibliográficas
BRASIL. Estatuto da Igualdade Racial. Lei 12.288, de 20 de julho de 2010. Institui o estatuto da Igualdade Racial; altera as leis nos 7.716, de 05 de janeiro de 1989, 9.029, de 13 de abril de 1995, 7.347, de 04 de julho de 1985, e 10.778, de 24 de novembro de 2003. Diário Oficial, Brasília, DF, 20 jul. 2010.
GUIMARÃES, Reinaldo da Silva. Afrocidadanização: ações afirmativas e trajetórias de vida no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo; Selo Negro, 2013.
GUIMARÃES, Reinaldo da Silva, LYRIO, Bruna. Porque para o negro sim! As cotas raciais como instrumento para a Afrocidadanização. Mauritius. Novas Edições Acadêmicas, 2018.
NASCIMENTO, Elisa Larkin. O Sortilégio da Cor: Identidade, Raça e Gênero no Brasil. São Paulo: Summus, 2003.

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