Violência contra a pessoa negra e a ausência da Afrocidadanização

Sutileza violenta: a violência sempre negada, o preconceito sutil, o menosprezo contra as pessoas negras na sociedade e a ausência da Afrocidadanização.

Nos episódios veiculados na mídia acerca das diversas e diferenciadas ações práticas violentas, especialmente as direcionadas aos indivíduos da população negra, pode-se perceber como se manifesta o processo vilipendiamento da Afrocidadanização.

A complexidade inerente as ações práticas violentas tanto em seus aspectos subjetivos quanto na objetividade da sua materialização, demonstra como tais ações estão imbricadas e naturalizadas nas relações de poder, escondendo sua real natureza e motivação.

Podemos identificá-las a partir das suas diversas manifestações tais como, violência física, simbólica, psicológica, moral, sexual, gênero, racial, entre outras, contudo, a discussão empreendida aqui não se refere a uma específica forma de violência, mas a reflexão acerca do que todas essas ações possuem em comum: o menosprezo à dignidade humana.

Dessa forma, segundo Michaud, (1989, p. 11):

[…] há violência quando, numa situação de interação, um ou vários atores agem de maneira direta ou indireta, maciça ou esparsa, causando danos a uma ou várias pessoas em graus variáveis, seja em sua integridade física, seja em sua integridade moral, em suas posses, ou em suas participações simbólicas e culturais.

Foto: Reprodução da internet

O menosprezo ao outro e a prática social da violência

Um dos aspectos fundamentais da constituição da dignidade da pessoa humana em sociedades instituídas em Estado Democrático de Direitos, está no fato de se considerar o outro como um ser digno de respeito em sua especificidade pessoal.

Segundo Ingo Wolfgang Sarlet (2001, p. 60), temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão dos demais seres humanos e direitos fundamentais.

Para Eliane Cristina Huffel Campos (2011), o entendimento do conceito de dignidade humana como aparece, no Brasil, no âmbito da Constituição de 1988, é o fundamento de todo o sistema dos direitos fundamentais, no sentido de que estes constituem exigências, concretizações e desdobramentos da dignidade da pessoa e que com base nesta é que aqueles devem ser interpretados, dela partindo o desenvolvimento do Estado de Direito e de seus deveres, manifestos, dentre outros, na garantia e no respeito aos direitos fundamentais, evitando assim que atos praticados por outrem e, em especial, pelo próprio Estado através dos seus agentes, representem um retrocesso no processo de resgate do exercício da cidadania.

Em oposição às diretrizes instituídas em uma sociedade democrática de direito, através da sutileza do racismo, o menosprezo ao outro e o desrespeito a sua dignidade e direitos humanos, constitui um dos principais motivos para as diversas ações práticas violentas, as quais podem ser entendidas como atitudes socialmente objetivadas, porque não estão baseadas somente em conflitos em determinados momentos, mas baseiam-se em atitudes naturalizadas, profundamente subjetivadas, como parte do processo educacional, estruturado socialmente.

De fato, as relações sociais de dominação em nossa sociedade foram estruturadas tendo como base o poder colonial, ancoradas no patriarcado, nas relações de distinção entre senhor e escravo; colonizador e colonizado; branquitude versus negritude; superior versus subalterno; rico versus pobre, entre outras, as quais atribuem amplitude e legitimidade, mas não a legalidade, as diversificadas ações violentas, qualificando as relações de poder que delas emanam.

Na materialização dessas ações estão contidas as dimensões socializadoras, institucionalizadas e instituídas, transmitidas e ensinadas ao longo da história, como parte da incorporação de um habitus cultural, que atribuem lugares e status socialmente determinados a quem pode agir violentamente e a quem é o objeto dessas práticas, como ocorre nos casos das ações práticas violentas entendidas como racismo, direcionadas aos indivíduos da população negra.


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Dimensões subjetivas das ações práticas violentas

Nas diversificadas ações práticas violentas observa-se a ideia de Estigma, entendida como uma marca, um atributo ou um estereótipo que serve para identificar as pessoas que portam determinados traços, que podem ser aceitos ou não em determinados contextos socioculturais.

Segundo Goffman (1988) existem três tipos de “estigma” nitidamente diferentes: em primeiro lugar, há as abominações do corpo, as várias deformidades físicas.

Em segundo, as culpas de caráter individual, percebidas como vontade fraca, paixões tirânicas ou não-naturais, crenças falsas e rígidas, desonestidade, entre outras.

Finalmente, há os “estigmas” tribais de raça, nação e religião, que podem ser transmitidos através de uma família.

Assim, aponta Goffman (Goffman, 1988, p. 22), o indivíduo que poderia ter sido bem recebido na relação social cotidiana possui um traço que pode impor a atenção e afastar aqueles que ele encontra, destruindo a possibilidade de atenção para outros atributos seus.

Portanto, um indivíduo estigmatizado sofre por causa do falso reconhecimento ou por falta deste.

Desse modo, nas ações práticas violentas direcionadas aos indivíduos da população negra, estão contidas as configurações do racismo em suas diversas facetas, sejam por meio estrutural, institucional, individual, ambiental, religioso, cultural, entre outras formas, e demonstra como estes indivíduos carregam os estigmas do seu pertencimento racial.

Aspectos objetivados das ações práticas violentas

As ações práticas violentas, especialmente as direcionadas à pessoa negra, ocorrem independentemente da sua condição de classe ou do seu pertencimento a determinado estrato econômico e social.

Isto significa que tais ações estão acima das considerações e dos status sociais atribuídos aos indivíduos em seu contexto social, por serem inerentes a constituição da nossa sociedade, seja para praticá-las ou para recebê-las.

Estes aspectos, definem e caracterizam, não somente as ações que ocorrem de maneira direta, mas trazem nas próprias ações os seus traços inerentes: as intenções e a subjetividade de quem as realiza.

Pode-se perceber isso nos recentes, variados e diferenciados casos de racismo: abandono de incapaz no elevador, sufocamento de um cidadão negro, as várias ofensas racistas nas redes sociais, as mortes de crianças e adolescentes nas diversas comunidades por balas perdidas e por policiais, entre outras.

Ressalta-se ainda, a ampliação das ações práticas violentas no período da pandemia do COVID-19, pelas dificuldades mediante aos desafios enfrentados pelos indivíduos da população negra, que padecem com a falta do mínimo de direitos sociais para sobreviverem ao CORONAvírus, como a falta d’água, materiais para higiene, álcool, sabão, a impossibilidade de distanciamento social em determinados espaços vulneráveis, como é o caso nas moradias precárias nas favelas, falta de alimentos saudáveis, entre outras. Cabe ressaltar que os indivíduos da população branca padecem com o descaso.

Juntam-se a estes casos, a dificuldade dos indivíduos da população negra em relação aos direitos e benefícios sociais, a sua falta de representatividade nos espaços de poder, a constituição histórica da sua subalternidade, a negação dos seus méritos, a demonização das religiões de matriz africana, a desculturalização da cultura afro-brasileira, entre outras formas de ações práticas racistas, que violentam e caracterizam o desprezo para com o outro em sua dignidade e existência humana.

Por estes aspectos, urge empreender a revisão dos papéis que tentam igualar os diferentes sujeitos sociais, em um processo desculturalizador de seus patrimônios culturais, subalternizando-os ou alienando-os, como uma emergência crítica contra o discurso dominante e homogeneizante das relações de poder, para sedimentarmos estratégias de re-existências no cerne da sociedade brasileira, cuja lógica do racismo e do preconceito a diversidade étnica, marca sua identidade nacional.

Neste contexto, é preciso efetivar o processo de transformação do habitus cultural da sociedade brasileira, com o reconhecimento do protagonismo histórico das diversas etnias que construíram o Brasil, com a valorização e a preservação das memórias, saberes, ofícios, modos de fazer, celebrações e suas diferentes formas de expressão, como instrumentos que possibilitem a constituição de um espaço fecundo que possa promover e assegurar outros discursos e a construção de um pensamento para além do pensamento dominante.

Assim, devemos refletir sobre as razões da existência das ações práticas violentas direcionadas as pessoas negras, para tentarmos construir uma sociedade onde o desprezo pelo outro e sua sutil violência, seja transformada em um querer ver, um aceitar e compreender a alteridade, como um processo de materialização da Afrocidadanização,

Referências bibliográficas
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 7. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.
CAMPOS, Eliane Cristina Huffel. O princípio da dignidade da pessoa humana como argumento para a tutela do direito fundamental à saúde pelo Poder Judiciário Brasileiro. XII Salão de Iniciação Científica – PUCRS, 03 a 07 de outubro de 2011.
GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4.ed. Rio de Janeiro: Editora Koogan, 1988.
GUIMARÃES, Reinaldo da Silva. Afrocidadanização: ações afirmativas e trajetórias de vida no Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Selo Negro, 2013. 208 p.
MICHAUD, Yves. A violência. São Paulo: Ática, 1989.
MINAYO, Maria Cecília de Souza. Violência: Um problema para a saúde do brasileiro. Impacto da Violência na Saúde dos brasileiros. Ministério da Saúde. Brasília/DF: Ministério da Saúde, 2005.
NUNES. Sylvia da Silveira. Racismo contra negros: um estudo sobre o preconceito sutil. [doi:10.11606/T.tde-27072010-082636]. São Paulo.: Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, 2010. Tese de Doutorado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano. (acesso em 11/08/2020, as 10h 27min).
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 60.

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